É, pois, não somente imperioso que o povo brasileiro mantenha os caminhos descobertos e afinados até o dia 28, como muito depois, visto que as lições sobre a fragilidade das democracias em países como o nosso devem ser apreendidas e aprendidas
Foto: Elza Fiúza/Agência Brasil
Por Luiz Roberto Alves*
Nenhum mito pode dirigir uma república, pois o mito precisa se impor mediante o que esconde da sociedade, que é a sua deformação, organizada para atingir objetivos pessoais e de seu grupo de poder. Quem dirige a república, ao contrário, precisa ter revelado o corpo inteiro, mostrar-se a favor de todo diálogo, encarar normalmente as diferenças, prestar contas com transparência e buscar alguns consensos, ainda que mínimos, mas indispensáveis.
Bolsonaro viajou na onda do mito. Passou pelo uso interesseiro de textos bíblicos sem contexto e referência, foi posseiro e invasor da bandeira nacional e suas cores, assim como apagou a sua história pessoal para destacar a voz criadora do medo, da opressão. Com tais artimanhas, do lado privado o mito exige a garantia da fidelidade sem qualquer questionamento; do lado público, trabalha para fechar bocas e limitar gestos.
Visto que qualquer mito rouba a história do povo em que se cria, assim foi ele ensinado a fazer; nesse roubo de história, as facetas deformadas e escondidas do real desafiaram as forças de todo o povo, mas também a consciência de seus seguidores e o processo de decisão dos indecisos e duvidosos.
Nenhum estudo científico contemporâneo afirmou ser fácil conseguir com que o mito se desfaça, pois não pode ser pela violência física e sim por três trilhas promissoras: a mobilização entusiasmada, o intenso e inovador diálogo e o voto.
Dá para entender por que o capitão propôs passar um lança-chamas no MEC, negar à escola pública e básica seu valor maior, a socialização da geração jovem (desterrando-a para a isolada educação à distância) e matar a memória de Paulo Freire. Ora, os três caminhos para superar o mito político sinalizam a pedagogia do educador mais amoroso e doce que conheci e com quem dialoguei: trata-se de fazer um grande círculo de cultura, que não se organiza sem muita mobilização. Do mesmo modo, a mobilização não rende quaisquer frutos sem diálogo inicial e continuado. Quanto ao voto consciente, é, entre outras atitudes, um sinal da mobilização e do diálogo, visto que criadores da consciência crítica e da autonomia. Esses caminhos, que fazem contínuas leituras das palavras das pessoas e do mundo social, de fato educam, formam, criam autonomia. É precisamente o que está a ocorrer no Brasil, agora!
Bolsonaro não lançará chama alguma sobre o MEC, nem destruirá a educação das crianças, adolescentes e jovens, pois se desfaz publicamente. Não rasgará nenhuma folha do ECA, exceto o seu exemplar, se por acaso o tiver. Não fará promiscuidade entre a defesa do patrimônio natural e cultural e o lucro; não discriminará grupos sociais e nem fará mais piadas e chacotas dos brasileiros. Não mandará torturar e matar nossos filhos. As faces deturpadas do mito que o incorporaram se desfazem no meio da rua, no movimento saudável de conversões, recuperação de memória, releitura bíblica verdadeira, reflexão sobre a modernidade dos laços de família, reencontro com a política e na importância dos direitos humanos, educacionais e culturais das crianças, adolescentes, jovens e adultos, na escola e fora dela.
É, pois, não somente imperioso que o povo brasileiro mantenha os caminhos descobertos e afinados até o dia 28, como muito depois, visto que as lições sobre a fragilidade das democracias em países como o nosso devem ser apreendidas e aprendidas (como também gostava de dizer Freire) a fim de que uma profunda mudança na cultura política do país não permita jamais a perigosa formação de mitos no fazer político.
*Luiz Roberto Alves é educador público, professor-pesquisador, membro do Conselho Nacional de Educação entre 2012 e 2016 e presidente da Câmara de Educação Básica do CNE entre 2014 e 2016
Revista Fórum

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