Como quebrar a espinha dorsal da Exclusão Social?
por Ion de Andrade


O Estado brasileiro como Casa Grande e a escravaria de hoje


Antes de tudo, escrevo esse artigo à luz do momento trágico que se abate sobre a vida nacional e sobre a de Lula em particular. Ele está preso por ter ousado e com sucesso em muitas áreas, atenuar as desigualdades sociais no Brasil. A sua prisão é parte do pesadelo que vivemos e devemos lutar por sua liberdade.

Retomar a agenda do enfrentamento da Exclusão Social é dar continuidade a esse projeto exitoso que desde sempre o moveu. É colocá-lo simbolicamente livre novamente, como ele próprio anteviu no seu último discurso antes da prisão: Lula é uma Ideia! Reencontrar essa agenda tem também a virtude de nos retirar da agenda hipnótica e reativa gerada pelas ações do governo.


A questão guia que devemos nos fazer é: Como avançar na agenda da Inclusão Social em meio a um cenário político tão adverso? Ou, mais do que isso: Como quebrar a espinha dorsal da Exclusão Social e adentrarmos num ciclo em que esse ideário e práticas tenham se tornado hegemônicos?

São as perguntas sobre as quais queremos refletir nesse artigo.



Exclusão Social: como se mantem e como se perpetua


Muitos pensadores brasileiros têm se dedicado ao esforço de entender a exclusão social no Brasil que faz de nós um dos países mais desiguais do mundo.

O racismo, a herança escravocrata e o caráter elitista e excludente das nossas elites são, desde sempre, sob diversos prismas e entendimentos, as razões profundas mais lembradas por um sem número de sociólogos. Eles têm razão.

Mas, o que pouco se aborda é o “como” esse fenômeno da Exclusão Social se mantem, se reproduz e se perpetua nas entranhas da nossa sociedade. Qual é o aparelho ideológico, como diria Althusser, a engrenagem que vem moldando a nossa realidade contemporaneamente, mas também desde os primórdios? Qual o vetor força que a constrói, sorrateiramente, escondido na normalidade, invisível como um fantasma, dia após dia no cotidiano do Brasil e dos brasileiros há séculos? Onde atua? Qual o cenário em que esse agente estatal ataca com maior intensidade? De que forma, por desconhecê-lo, mesmo os progressistas acabam por reforçá-lo?

A Exclusão Social é uma construção contínua e permanente do Estado brasileiro ao longo dos séculos. A mão que a esculpe é invisível pela simples razão de que toda ausência o é. Apesar de retratar uma realidade exterior ao Brasil, um filme africano, “O Menino que descobriu o vento”, ilustra muito bem essa realidade e nos ajudará a entender.

Trata-se da história de um garoto de Serra Leoa, na África. Para que a sua comunidade tivesse acesso a um simples cata-vento para bombear a água do subsolo para a agricultura, é ele, a sua inteligência e trabalho, que tornam aquilo possível. O menino é o engenheiro civil, o agrônomo e o eletricista da obra. A água, no entanto, estava ali, disponível através de poços artesianos artesanias e feitos à mão, provavelmente há décadas. O menino é premiado, sua ideia se espalha, ele faz uma formação superior numa universidade americana. A única coisa que o filme não menciona é POR QUE o Estado não havia tomado a iniciativa antes.

A ausência do Estado torna invisível a sua responsabilidade maior e direta para com a miséria secular daqueles camponeses. A única coisa que se vê é a miséria do povo, fato que acaba por responsabilizá-lo por sua própria desgraça e não ao Poder Público. O fantasma assassino, o Estado ausente, esteve lá como uma presença invisível, um mal assombro, uma maldição. Eis o Brasil dos miseráveis.

No filme o garoto teve algum acesso à escola, o que permitiu, com sua genialidade, conceber saídas. Sem a escola não teria tido a ideia. A esquerda no Brasil, então, apoia a escola. A ideia é que se fosse boa e para todos, o problema já teria deixado de existir há muito tempo, o incrível é que ninguém consegue construir (há exceções) escolas boas em favelas e periferias, nem a esquerda….

Então, ao acentuar esse viés escolar, terminamos por invisibilizar a ausência do Estado em tudo o que há de não escolar na Exclusão Social, reforçando a ideia da responsabilização dos excluídos por sua exclusão. Tão óbvio parece que quase podemos enxergar que se os Excluídos fossem menos analfabetos ou mais inteligentes, não seriam mais miseráveis. Mas o que ocorre é o oposto.

Na verdade, é a ausência do Estado que não somente torna os excluídos iletrados, pois não têm aceso a escolas dignas, como os torna miseráveis, pois não têm acesso a nenhuma estrutura (sequer um cata-vento mambembe) que seja capaz de resolver os seus problemas do cotidiano.

Apostar na escola como ferramenta única de inclusão é, na verdade, um projeto desumano e neoliberal. Mais que isso, se uma comunidade nada tem, tampouco terá uma escola que preste, pois o projeto subjacente que se constrói é o da Exclusão Social, razão porque quase nenhuma escola de pobre presta, nem as da África e nem as nossas.

Dessa parte queremos reter que o mecanismo pelo qual a escravidão se perpetua até os nossos dias no Brasil é o da ausência do Estado no cotidiano do povo, nas favelas e zonas rurais, o que assimila o Estado brasileiro à Casa Grande.


Nossas periferias e zonas rurais


As nossas periferias e zonas rurais são os alvos prioritários da ausência perpétua do Estado. Althusser elaborou uma complexa formulação da atuação do Estado para a modelagem da Sociedade a partir dos aparelhos ideológicos. O Estado brasileiro optou pela renúncia civilizatória. Só não é pior e só não vivemos a realidade africana porque aqui se estabeleceu, através das lutas do século XX, um “mínimo” que representa (apenas) o direito à sobrevivência. Nada além da sobrevivência existe nesses locais, exceto por iniciativa da própria comunidade, como no filme de Serra Leoa.

Tal como lá, essa ausência produz um Subdesenvolvimento Crônico que é a outra face da moeda da Exclusão Social, o primeiro gera a segunda e faz com ela um todo inseparável.

Nossas periferias e zonas rurais, exceto por ocasião das discussões pontuais e cada vez mais raras, do dito “orçamento participativo”, jamais têm a oportunidade de apresentar ao Poder Público as suas reivindicações sociais, a menos que sejam urgentes e graves e ameacem a sua sobrevivência. Nas eleições, mesmo municipais o que existe, sempre, é um duelo de discursos ideológicos, mas não a discussão dos equipamentos e políticas necessários a quebrar a cadeia de Exclusão Social, o que as mantem alijadas da contemporaneidade.

A escola precária e de meio turno, juntamente com a Associação Comunitária mambembe, faz conjunto com a ausência de bibliotecas públicas, teatros, parques e praças, anfiteatros, belvederes, piscinas públicas, alamedas pedestres, salas públicas para eventos e celebrações, praças desportivas, ginásios poliesportivos, escolas de dança ou de música, Instituições de Longa Permanência de Idosos, centros de velório, banhos públicos para as populações em situação de rua, etc, etc, etc. Além disso, nesses locais, a beleza arquitetônica está terminantemente proibida e não haverá obra pública em periferia ou zona rural que tenha levado a beleza em consideração.

Dessa parte vamos reter que esse Subdesenvolvimento Crônico “proposital” e a Exclusão Social que ele produz secularmente, são uma coisa só. Se quebrarmos o primeiro posicionando o Estado a tomar parte do desenvolvimento das nossas Periferias e Zonas Rurais, a Exclusão Social não poderá subsistir.


A questão estratégica das eleições municipais


Quem é o Poder Público que tem interface direta com as Periferias e Zonas Rurais e poderia começar a quebrar essa lógica da Exclusão Social pela ausência do Estado? O município.

Conjunturalmente as prefeituras ganham relevância também pelo fato de que nos aproximamos das eleições municipais. Porém, o acirramento de ânimos vai provavelmente federalizar as eleições. O risco que isso comporta é o de disputarmos apenas um discurso e não um projeto. Se ganharmos, restritos a esse entendimento, corremos o risco de fazer governos medíocres, o que não nos ajudará no processo de redemocratização. Os municípios colherão a ressaca da miséria que crescerá com o desmonte do Estado e o neoliberalismo. Serão os micro-países onde baterão às portas milhões de refugiados internos deserdados pela direita.

Os candidatos do campo democrático às eleições municipais deveriam preparar-se para ouvir as suas periferias e zonas rurais em suas necessidades e, a partir disso, construir seus Planos de Governo. Se eleitos deveriam investir o quanto puderem nas soluções que tenham sido apontadas (Equipamentos Coletivos e Políticas Públicas) através de uma agenda factível e sustentável para o Desenvolvimento e a Inclusão Social.


O que o Brasil ganha com isso


A inclusão social produz cidadãos, produz cidadania, fortalece a democracia e estabiliza o Estado de direito.

Essa agenda de desenvolvimento e inclusão social não deve ser confundida com o ideário pequeno burguês de “qualidade de vida” tantas vezes frívolo. Não. Trata-se de asfaltar progressivamente a via que já tardiamente deverá levar o nosso povo à solução dos seus problemas cotidianos e à contemporaneidade. Naturalmente que isso pode coincidir e coincide com “qualidade de vida”, mas esse é um subproduto de uma vida participativa e includente.

A fragilidade crônica das nossas instituições está ligada a baixos níveis de cidadania que decorrem da exclusão social das maiorias e da miséria a que estão submetidas.

Quanto mais numerosa e consistente for a cidadania, escravos forros de hoje, libertados pela quebra do grilhão da ausência do Estado, mais difíceis serão os retrocessos, mais rápido recuperamos democracia.




GGN

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