Não entendemos o nosso mundo, ignoramos ou esquecemos do passado que nos foi legado e que nos constitui, nem tampouco o futuro que está por ser construído a partir de nossas ações

por Luís Alfredo Galeni
Imagem por Urich Scheel

Perceber a existência de um kalokagathia, expressão da filosofia grega traduzida como o Belo e Bom/Virtuoso, diante do mundo que está em pé diante de nossos olhos é uma tarefa difícil, pois, precisamos compreender em que tempo estamos, que mundo herdamos e legaremos às gerações futuras.

O Belo e Bom são doutrinas que estão ligadas diretamente ao tempo presente e ao tempo vindouro, pois exige de nós, segundo a visão dos gregos, uma mudança em nossas ações diante daquilo que queremos ser, em vista de um ideal que nos foi deixado. Em Os Miseráveis de Victor Hugo, o personagem Jean Valjean, rouba para alimentar a família de sua irmã e é preso. Dentro da cadeia ele se transforma e torna-se um homem ruim. São 19 anos apartado da sociedade, marcado pelo brutal sistema penal francês do século XIX. Ele se torna um miserable, não pela sua pobreza ou por ter sido privado de seu bem mais precioso, a liberdade, mas justamente por não conseguir mais ver o Bom e Belo, por ter perdido qualquer perspectiva de tempo, aprisionando-se em um passado amargurado. Quando solto, vê o mundo dar as coisas a ele. Valjean, então recorre novamente ao crime. Ele rouba a prataria de seu bem-feitor, o Bispo de Digne, Don Bienvenu mas é pego. Para sua surpresa, o Bispo nega que Valeajn o tenha roubado, e a prataria foi presente dado por ele ao ex-condenado. Ao entregar-lhe os castiçais, em um gesto muito bonito compaixão, Bienvenu desata as correntes temporais do passado que prendem Jean Valjean, possibilitando o vislumbre de um presente e futuro diferentes. Á partir daí Valjean altera suas ações, sem perder de vista o que ele foi e quem ele veio a ser. É verdade que o futuro que se abre ao ex-condenado não é fácil e, na figura do chefe de polícia Javert, que personifica o próprio passado que busca negar a kalokagathia, Valjean passa por intempestivas situações.

Observemos outro miserable, mas esse um alemão. Comecemos com uma fala de K, em diálogo com Frieda em O Castelo, de Franz Kafka: “Você continua sendo a amante de Klamm, distante ainda de ser minha mulher. Às vezes isso me deixa triste, é como se tivesse perdido tudo; tenho então a sensação de ter acabado de chegar à aldeia, mas não esperançoso como antes na realidade estive, e sim consciente de que só me esperam decepções e que vou ter de prová-las uma depois da outra até a última gota. Mas isso só acontece de vez em quando e no fundo confirma a existência de algo bom, ou seja, aquilo que você significa para mim”.

Essa fala de K é carregada de sutilezas, pois ele constrói uma narrativa com um tempo passado e presente de forte valor negativo, em relação a um futuro redentor, que vai de encontro com a lógica cristã da redenção. Frieda continua a amante de Klamm e isso a coloca distante de K. O presente contínuo da relação amorosa entre o rival e sua amada, cria uma lacuna no tempo colocando-a fora de qualquer perspectiva futura de que ambos possam estar juntos. O presente de K o aprisiona, dando-lhe a impressão de que perdeu tudo. Essa “prisão” temporal de K, o joga de volta ao passado, colocando, mentalmente mesma situação de quando chega na aldeia, com um acréscimo: ele sente como se vivesse novamente as mesmas experiências sabendo tudo que viria a acontecer, ou seja, suas experiências estariam privadas do sentimento de novidade, de expectativa. K, ao fim, recua e subverte sua prisão temporal, afirmando que esse sentimento só acontece “de vez em quando”, tentando anular sua constatação melancólica e, em seguida, deposita em Frieda a significação de sua kalokagathia. Frieda é a parte boa de K, ela desperta o sentimento bom.

Para nós, Frieda é uma falsa-kalokagathia, ela, é, parafraseando Nietzsche, é o prazer consigo mesmo diante da coisa. K busca se salvar de sua condição miserable transformando sua amada na chave de seu calabouço de tristeza. Ele encontra prazer em sua vida, tendo-a como o seu objeto, o prazer de sua vida não é a mudança, visando ações boas, belas, virtuosas ou justas, mas sim conquistar seu objeto de desejo. Ele se salvaria através do desejo e não da ação.

O leitor diante dessa construção narrativa é levado a se colocar em perspectiva e imaginar algum outro que redime sua vida, um objeto de desejo que venha a ser sua kalokagathia. Entretanto, caso algo do gênero esperasse K – tal como também não nos espera – seria mais adequado sua fala estar em tom menos remissivo à sua desolação e solidão, assemelhando-se ao modo das narrativas teleológicas. K se expressa como se precisasse acreditar naquilo que diz, altera de um tem pessimista para um otimista, mas não chega a convencer. Ele precisa depositar no outro – em Frieda – sua felicidade futura, para que o passado desolador que retorna, formando um presente desesperançoso possam ser redimidos e ele se liberte. No romance não sabemos nada sobre o passado de K, sabemos apenas que ele chegou ao Castelo para trabalhar como agrimensor. O livro não tem uma conclusão, não sabemos se K é efetuado como agrimensor ou se chega a falar com o proprietário do Castelo. K é uma figura sem passado e sem futuro, preso em seu próprio desejo por Frieda e por reconhecimento na estrutura burocrática do Castelo.

Assim como K em um labirinto existencial, metafórica referência à um castelo de enigmática burocracia e administração, um sem-fim, que confunde e não dá certezas palpáveis, também, a nosso modo, vivemos uma espécie de exílio no Castelo de K. Jean Valjean não depositou em Don Bienvenu sua salvação, ele depositou em suas ações seu próprio ideal, sua kalokagathia foi a própria expectativa de suas ações rumo ao futuro, nunca se esquecendo do passado que o constituiu e o formou. Javert, ao final do livro reconhece a humanidade de Jean Valjan e salva a sua própria consciência, conseguindo mudar sua ação. Há, assim, uma dimensão de passado e futuro na obra.

A sociedade contemporânea, talvez, se assemelhe ao enredo de O Castelo mais do que com o enredo de Os Miseráveis. A nossa busca de ideal de Bom e Belo está voltada a desejos: mitos, heróis, objetos e menos a ações. Não entendemos o nosso mundo, ignoramos ou esquecemos do passado que nos foi legado e que nos constitui, nem tampouco o futuro que está por ser construído a partir de nossas ações. A dimensão histórica e temporal tem desaparecido lentamente. Imaginamos um futuro desejado e inalcançável só para confirmar a existência de algo bom, para nos consolar da miséria de nosso tempo. Como afirmou Heidegger, em situações como essa, não conseguimos constatar nem a nossa própria decadência. Decaímos sonhando um futuro inalcançável, justamente por não fazermos nada para alcança-lo. Somos miserables desejosos de um futuro chamado Frieda.

Luís Alfredo Galeni, mestre em estudos da literatura e professor de História.



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