Por José Geraldo Couto, no Blog do Cinema
Um “mito”, quando o epíteto se refere a uma pessoa viva, é alguém que, para o bem ou para o mal, catalisa pulsões, desejos e medos de toda uma época, de toda uma cultura. É o caso, sem a menor dúvida, de Bob Dylan. Só que, quanto a Dylan, trata-se de um mito que se desmonta e reconstrói a cada momento, num jogo de máscaras e metamorfoses que, no campo da cultura de massa, só encontra paralelo em outro mito contemporâneo, David Bowie.
O suposto documentário Rolling Thunder Revue: A Bob Dylan Story, de Martin Scorsese, que entrou em cartaz ontem (12 de junho) na Netflix, ao mesmo tempo ilumina e obscurece esse processo de autoconstrução permanente.
Não por acaso, as primeiras imagens que vemos são de um curta de Méliès em que o cineasta-prestidigitador faz desaparecer e reaparecer uma mulher. É esse papel mágico e enganador do cinema que será atestado – e questionado – nas duas horas e pouco que se seguirão.
Documento e ficção
A um olhar ingênuo ou desinformado, o filme parecerá apenas mais um documentário musical, recuperando material de arquivo de uma turnê (a Rolling Thunder do título, realizada em 1975) e entremeando-o com entrevistas de participantes do evento que ainda estão vivos, entre eles o próprio Dylan. Mas não é o que parece.Os registros de época, que no filme de Scorsese são atribuídos a um cineasta rabugento chamado Von Topp ou algo assim, foram extraídos na verdade de um longa-metragem dirigido pelo próprio Dylan em 1978, Renaldo and Clara, que por sua vez já misturava documentário e ficção.
O sujeito apresentado como cineasta em Rolling Thunder é, na verdade, o ator Martin von Haselberg, marido de Bette Midler – que também aparece no filme, ao lado de um sem-número de celebridades, do poeta Allen Ginsberg à compositora e cantora Joni Mitchell, passando por Patti Smith, Sam Shepard, Joan Baez, Sharon Stone e o boxeador Rubin “Hurricane” Carter. O político democrata amigo de Jimmy Carter, por sua vez, não é outro senão o ator Michael Murphy.
A turnê em si já é um caleidoscópio espetacular, um mergulho na contracultura norte-americana num momento profundamente traumático da vida do país, logo após Watergate e a “expulsão humilhante” dos americanos do Vietnã, e poucos anos depois do fim do sonho hippie, da dissolução dos Beatles, da morte de Hendrix e Joplin etc. É um road movie por uma América entre anestesiada e atordoada, que aquela trupe de malucos (a expressão não é exagerada) vem agitar.
Fraturas da América
Todas as fissuras e fraturas daquela sociedade vêm à luz: as tensões raciais, as reivindicações ancestrais dos índios, o conflito de gerações, as contradições da cultura popular-industrial, as drogas, o sexo e, claro, o rock’n’roll. Há um certo clima de ressaca, de consciência de que o auge daquela efervescência já havia passado, de que se vivia quase uma paródia desencantada da revolução dos sixties.O que impede, porém, o filme de resvalar para um mero registro melancólico é, justamente o seu jogo ficcional, no limite do metalinguístico, que a certa altura nos faz questionar o que é real e o que é inventado naquilo tudo. Como se Scorsese nos mostrasse que o passado, assim como a personalidade de Dylan, pode ser incessantemente reinventado, embaralhado, tornado potente de novo.
A certa altura, Sharon Stone, que na época da turnê tinha 19 anos, diz que foi com a mãe ver um show de Dylan, e que este a convidou para acompanhar a trupe na continuação da excursão. Na parada seguinte, conta ela, Dylan lhe disse que tinha feito uma canção em sua homenagem. No show, ele canta “Just Like a Woman” e durante o refrão olha para ela, que se debulha em lágrimas até ficar sabendo que a canção tinha mais de dez anos.
A história em si já é divertida, mas e se for inteiramente inventada? Só o que vimos foram fotos em preto e branco da jovem Sharon com uma camiseta da banda KISS. Todo o resto construímos na nossa cabeça, a partir dos depoimentos de Sharon e de Dylan, que podem muito bem ser combinados e mentirosos. Cinema é ilusão, como sabemos desde Méliès e sua dama oculta.
Palavra e música
Mas cinema é verdade também, e desse amálgama de imagens reais e falsos depoimentos surge uma leitura rica, vívida, da cultura norte-americana pós-1960. Nessa leitura, uma figura se eleva, no filme, quase à mesma altura de Dylan: o poeta Allen Ginsberg.Há uma relação curiosa entre os dois poetas, ao menos no modo como emergem no filme: Ginsberg parece querer ascender da palavra à música, ou melhor, fazer as palavras virarem música, e Dylan, na sua forma de cantar, dá a impressão de querer despir o que há de melódico nas canções, gritar as palavras, torná-las mais duras, menos melodiosas, faca só lâmina.
Repete-se em vários momentos o célebre verso inicial de Uivo, de Ginsberg: “Vi as melhores mentes da minha geração destruídas pela loucura”. A mente de Bob Dylan foi ao fundo da loucura, mas sobreviveu em plena lucidez, graças em grande parte ao humor, à autoironia e à automitificação. E Martin Scorsese, que já havia retratado o início da carreira do bardo em No Direction Home (2005), é parceiro e cúmplice deste novo capítulo de sua reinvenção.
Outras Palavras
Postar um comentário
-Os comentários reproduzidos não refletem necessariamente a linha editorial do blog
-São impublicáveis acusações de carácter criminal, insultos, linguagem grosseira ou difamatória, violações da vida privada, incitações ao ódio ou à violência, ou que preconizem violações dos direitos humanos;
-São intoleráveis comentários racistas, xenófobos, sexistas, obscenos, homofóbicos, assim como comentários de tom extremista, violento ou de qualquer forma ofensivo em questões de etnia, nacionalidade, identidade, religião, filiação política ou partidária, clube, idade, género, preferências sexuais, incapacidade ou doença;
-É inaceitável conteúdo comercial, publicitário (Compre Bicicletas ZZZ), partidário ou propagandístico (Vota Partido XXX!);
-Os comentários não podem incluir moradas, endereços de e-mail ou números de telefone;
-Não são permitidos comentários repetidos, quer estes sejam escritos no mesmo artigo ou em artigos diferentes;
-Os comentários devem visar o tema do artigo em que são submetidos. Os comentários “fora de tópico” não serão publicados;