Cientista político William Nozaki avalia que Michel Temer e Jair Bolsonaro acabam com Estado de bem-estar social, tornando o Brasil instrumento do mercado financeiro

Publicado por Felipe Mascari

José Dias/PR
Golpe de Temer e vitória de Bolsonaro representam ruptura estrutural envolvendo as conquistas da sociedade brasileira ao longo do século 20

São Paulo – A consolidação do impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff completou três anos neste 31 de agosto. A posse definitiva do governo Michel Temer (MDB) – que já ocupava o cargo interinamente desde 17 de maio de 2016 – e a vitória de Jair Bolsonaro (PSL) fizeram o Brasil ter uma mudança brusca de rumo, com projetos que deixam o país nas mãos do mercado financeiro, atuando como uma agência de risco para o mundo dos especuladores, e abandonam o projeto de nação, com desenvolvimento econômico combinado com distribuição de renda e inclusão social.

Para comentar os impactos dos efeitos do golpe de 2016 na economia e na estrutura do Estado brasileiro, a Rádio Brasil Atual ouviu o cientista político William Nozaki, professor de Ciência Política e Economia da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo e diretor do Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás e Biocombustíveis (Ineep). Nokaki afirma que o Estado brasileiro passa por refundação destrutiva desde o golpe, e entra num momento de ruptura social.

De acordo com o professor, a retirada do Estado como um ator central da economia trará resultados prejudiciais para o futuro. Tornarão o Brasil mais vulnerável, e sua população mais exposta aos impactos negativos das crises econômicas.

“Com o desmonte do BNDES que, agora, trabalha nas desestatizações, além do recuo da atuação do Banco do Brasil e Caixa, a gente percebe como o rentismo privado ganhou uma margem de manobra expressiva. Some-se isso tudo ao desmonte da Petrobras, e o cenário fica mais dramático. É um desmonte despreocupado com projeto de país e orientado para interesses privados, mercantis e rentistas”, critica Nozaki.

Acompanhe a entrevista



Neste 31 de agosto, completam três anos da oficialização do impeachment de Dilma. Houve um cavalo de pau na política do Brasil desde a posse de Temer?

Neste período de três anos tivemos uma espécie de refundação do Estado num sentido ultraliberal, com recuo nas atividades do Estado na formulação de políticas públicas e avanço na compreensão do Estado como instituição que funciona como uma agência de risco para o mercado financeiro. A gente saiu de um momento em que o Estado era protagonista de um projeto de desenvolvimento e a construção de um projeto de inclusão social, para um momento em que conjunto das estruturas do Estado está sendo usado em favor dos grupos dominantes da elite, e com absoluto descaso em atender as demandas da população.

Nós chegamos próximo ao Estado de bem-estar social, mas Temer reverteu isso e Bolsonaro aprofundou, né?

Exatamente, e isso se explicita por meio da ruptura com os três grandes pactos que consolidaram a possibilidade de a gente ter algum nível de Estado de bem-estar social no Brasil: com o pacto Varguista, na década de 1930, que viabilizou instrumentos que construíssem o desenvolvimento econômico; com o pacto constitucional de 1988, que construiu as bases para a conformação de um Estado de bem-estar social; e com o pacto lulista de inclusão da maior parte da população no mercado formal de trabalho ampliado e no consumo ampliado.

Esse período dos últimos três anos é um momento de ruptura estrutural envolvendo as conquistas da sociedade brasileira ao longo do século 20.

Na crise de 2008/2009, o Estado promoveu políticas anticíclicas para que a crise não fosse um terremoto. A ação do Estado levou a um impacto de menores proporções para a população. Fazendo um exercício de imaginação, se essa crise ocorresse, hoje, com a equipe de Paulo Guedes, como seriam impactos?

A maneira como o Brasil enfrentou a crise de 2008 serviu como exemplo internacional de mobilização de instrumentos econômicos estatais de sucesso. A crise impactou o Brasil no primeiro trimestre de 2009, com baixa no PIB, mas em 2010, no sentido macro, o país não só já havia se recuperado como já apresentava níveis de crescimento maiores do que antes da crise. Tudo em função de um conjunto de elementos que envolveu empresas estatais como mecanismos de investimentos públicos, bancos públicos como instrumentos de oferta de crédito e uma série de medidas de estímulo à demanda que reativaram a atividade econômica. Havia ali uma compreensão de o Estado deveria tomar a frente de um processo de combate à crise e de reconstrução de um caminho de desenvolvimento.

Se a gente fizer esse exercício hipotético que você propõe, e vislumbrar como seria a reação do Brasil segundo a política de Bolsonaro e Paulo Guedes, dentro de uma nova crise econômica – e pode não ser tão hipotético assim, já que alguns organismos internacionais preveem uma nova crise nos próximos anos –, é muito difícil de enxergar instrumentos e possibilidades de uma recuperação economia, porque ao nos últimos três anos, com as privatizações, enxugamento da estrutura do Estado e a até a criminalização de políticas públicas orientadas para o estímulo à demanda e a inclusão social, o Estado perdeu a capacidade de dirigir o mercado. Isso significa que uma eventual próxima crise encontrará o Brasil numa situação muito vulnerável, e seus impactos poderão ser muito mais significativo sobre a economia e sobre o conjunto da sociedade brasileira.

A crise de 2009 contou com a ação dos bancos públicos, que ofereceram créditos e fizeram concorrência com as instituições privadas. Agora, os juros no cheque especial estão na maior alta dos últimos 25 anos justamente porque a Caixa e o BB deixaram de forçar uma concorrência. A Petrobras também fomentou uma indústria naval, que estava em baixa até o início da década passada, mas deixa de ser um instrumento poderoso por conta de escolhas do governo.

Em 2009, papel do BNDES para ceder crédito industrial foi fundamental, como o Banco do Brasil oferecendo crédito agrícola e a Caixa, crédito imobiliário. Isso ajudou na recuperação da crise. O fato dos bancos públicos praticarem taxas de juros menores criou um ambiente concorrencial que estimulou a dinamização do mercado interno.

Recentemente, com o desmonte do BNDES que, agora, trabalha nas desestatizações, além do recuo da atuação do Banco do Brasil e Caixa, a gente percebe como o rentismo privado ganhou uma margem de manobra expressiva nos últimos três anos. E somar isso tudo ao desmonte da Petrobras, o cenário fica ainda mais dramático.

Afinal de contas, no início de 2010, 2011, foi quando houve a reorganização do marco institucional e regulatório de exploração do pré-sal. E a Petrobras atuou como um instrumento fundamental para o desenvolvimento produtivo e tecnológico do país. Estimulou não só a indústria naval com a de engenharia pesada e a de construção civil como um todo. Não por acaso, quando observamos a conjuntura atual, o desmonte da Petrobras, que se desfaz de refinarias, áreas de logística, ativos de gás, biocombustíveis, e passa a atuar como uma mera furadora de poços, tem como efeito colateral o desestímulo em todos esses setores industriais importantes, que têm impacto muito importante na geração de emprego e renda no país. Esses elementos nos colocam numa situação problemática.

Nós vivemos tempos de reformas, trabalhista, previdenciária, já se fala em tributária. O governo promete a recuperação da economia, mas qual é a sua expectativa diante desses pacotes?

Criou-se um falso consenso no debate econômico brasileiro de que a aprovação da reforma trabalhista, a aprovação da reforma previdenciária e tributária seriam elementos necessários para destravar o crescimento econômico. Mas o que se observa no Brasil é uma imensa dificuldade da atividade econômica de se recuperar.

São 20 trimestres consecutivos de redução nas expectativas e na capacidade de crescimento do PIB. Então, os discursos de que as reformas retomarão o crescimento são mentirosos, porque o objetivo dessas reformas é criar um desequilíbrio na relação entre capital e trabalho, mas a favor do capital, além de abrir novos nichos de mercado para segmentos importantes que é para onde os agentes da equipe econômica vão voltar quando se desfizerem da estrutura do Estado.

É um desmonte acelerado, despreocupado com projeto de país e orientado para interesses privados, mercantis e rentistas.

Caso essas reformas e esse desmonte sejam efetivados pelo governo Bolsonaro, como ficaria um futuro governo que não siga essas diretrizes ideológicas de Paulo Guedes? Como lidar com uma situação de Estado depauperado?

Num eventual retorno das forças progressistas ao Estado vamos ter de exercer a criatividade institucional para reorganizar a maneira como o Estado pode reorientar a um projeto de crescimento e de desenvolvimento econômico, pois não vamos dispor dos instrumentos anteriores. A estrutura do Estado é complexa e, a despeito do desmonte, ainda deixa elementos fundamentais para que se possa reorganizar esse projeto, mas eles não estarão disponíveis na prateleira de possibilidades da organização de política econômica com a mesma intensidade que estavam no momento anterior.

Isso significa que um governo progressista terá que revisar a maneira como enxerga o Estado, reorientar o modo como maneja as estruturas estatais, porque esse ator, o Estado, vai ser um ente fundamental para que se possa recompor a capacidade de desenvolvimento do país. Será preciso utilizar intensamente as estatais que vão sobreviver, os ministérios que vão sobreviver, e organizar um projeto de desenvolvimento sem medo de assumir que o Estado está no centro e será o responsável por orientar o investimento privado, numa aliança que terá de ser feita em termos diferentes do que foi há 10 anos.



Rede Brasil Atual

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