Viomundo

AS LIÇÕES DA DRA. NISE

Por Nelson Nisenbaum*

O depoimento patético da dra. Nise Yamaguchi na CPI da Covid-19 do Senado nessa terça-feira (01/06) é uma síntese de rara riqueza sobre o período que vivemos.

Muito mais que um retrato do movimento dos discursos disruptivos dos quais o atual governo é useiro e vezeiro, consolida-se mesmo como o discurso intempestivo de uma época onde o ego exercia influência desproporcional no progresso de carreira de um profissional da medicina.

Explico. Venho de uma formação que marcou o final de uma era na medicina.

Apesar dos diversos talentos exigidos pela profissão e que passam longe do puro conhecimento científico, as condutas médicas que levavam alguém à fama era a famosa “experiência pessoal” ou “opinião” sobre o assunto que levava alguém à fama.

Advogando em defesa da hoje tão temida “opinião”, assevero que ela é uma categoria intelectual que faz uma escolha dentro de um campo de validade construída por diversos níveis de conhecimento sobre um assunto.

Não é aquele juízo que, para sua admissibilidade, exige o solapamento de todo o edifício conceitual e experimental prévio — o chamado discurso disruptivo.

Confesso que durante o curso médico cheguei a bater continência ao modelo egóico de conhecimento e prática médica.

Mas, ao mesmo tempo, acuso o aparelho formador (que ultrapassa as fronteiras das escolas médicas) de não me prover o ferramental necessário para que o personalismo pudesse ser identificado e removido dos radares do conhecimento.

Posteriormente, na pós-graduação que fiz na área de Histologia na USP, pude me alimentar dos alicerces filosóficos e metodológicos da produção científica.

E, ainda mais posteriormente, já no início do meu amadurecimento como médico (aos tardios 16 anos de formado), comecei a estudar e aprender sobre a medicina baseada em evidências.



Confesso também que a ela já dirigi muitas críticas ainda válidas (não à sua natureza, mas ao seu mau uso), mas que, sem a menor sombra de dúvida. é o norte de qualquer profissional de saúde que assim queira ser chamado.

De fato, a capacidade da medicina baseada em evidências de prover respostas precisas e definitivas é pequena como uma formiga e lenta como um mastodonte.

Mas uma vez feita a pergunta correta e metodologicamente bem organizada, obtém-se uma resposta.

Aí, os céus fazem uma festa, da qual ainda que como míseros mortais, podemos participar e desfrutar.

Mas há lugar para festas também no inferno.

Elas acontecem quando determinadas criaturas em determinadas circunstâncias — como a atual pandemia de covid-19 e o atual pandemônio político — resolvem dar lugar às forças atávicas das falsas e frágeis mitologias, que, na realidade, são meras idolatrias, como bem lembra o Prof.Dr. Ricardo Timm de Souza em sua magistral obra “Crítica da razão idolátrica”, que recomendo a todos.

O momento atual foi propício para que túmulos de um passado de pedestais se revirassem e fizessem ressurgir sob as vestes da farsa esses verdadeiros zumbis que hoje protagonizam o discurso disruptivo que parece exercer mesmo um efeito hipnótico e bestificante sobre seus portadores.

Sim, porque duvido que alguém tenha uma boa teoria para explicar como pessoas, como a Dra. Nise Yamaguchi — que carrega o peso de tradições da cultura familiar e étnica, da USP, do Hospital Albert Einstein e talvez outras que desconheça — derrapem na curva da estrada da vida nas proximidades de seu ápice e exponha ao mundo a ridícula cena de rolar montanha abaixo, colidindo com todo o tipo de obstáculo no caminho, deixando um rastro de pedaços e partes tão miseravelmente reduzidos que talvez o mais experimentado perito não consiga identificar o que ali aconteceu.

No momento, a questão fundamental a ser aprendida é que pessoas com essa incrível capacidade pornográfica de expor suas entranhas mentais existem e ocupam espaços que não conseguiram se proteger de um “vírus” ardiloso e oncogênico (homenageando aqui a especialidade da nossa “homenageada”) transportado nos seus cérebros.

O cenário de barbárie atual, bem análogo ao produzido na década de 1930 na Alemanha, jamais seria possível sem esse “vírus” dormente em segmentos da sociedade, que, de tempos em tempos e em lugares diferentes do planeta, desperta do seu túmulo como o mito do vampiro e põe em ação o arquétipo do sedutor sugador de sangue humano.

A Dra. Nise nos alerta para o fato de que a ciência e as instituições não bastaram, pelo menos, nas últimas quatro décadas para vacinar a sociedade contra tipos egóicos que, na hora e lugar certos, irão se agarrar a algo que nossa consciência moral mediana nos mantém bem distante para alcançar a fama e o poder.

E a falta dessa “vacina”, por sua vez, é certamente por ação deliberada de um grande movimento negacionista anterior cujas sementes agora frutificam. Mas são frutos de árvore podre.

*Nelson Nisenbaum, 60 anos, médico, escritor e ativista. Especialista em Clínica Médica e Psiquiatria Clínica, trabalhou 25 anos no SUS em medicina de urgência e emergência. Foi delegado do CRM em São Bernardo do Campo e Diadema e membro do Conselho Municipal de Saúde de SBC. Atualmente atende em consultório particular.

 

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