A jornalista Maria Cristina Fernandes vai direto ao ponto. A terceira via sonhada pelo sistema, já que não há um líder à vista para duelar com Lula, é cortar o poder do presidente com uma emenda constitucional que imponha um semipresidencialismo ao país, como antes a direita fez em 1961, com o parlamentarismo para tirar poderes de João Goulart. 

Nesse semipresidencialismo, articulado pelo golpista Temer com o auxílio de Gilmar Mendes, "o presidente é eleito pelo voto direto, escolhe, a partir da maioria congressual, o primeiro-ministro, e, por indicação deste, os integrantes do governo. Ainda chefia as Forças Armadas, conduz a diplomacia, escolhe ministros de tribunais superiores e embaixadores, tem direito de veto e sanção e dissolve o gabinete em situação de crise".

Eis a coluna de Maria Cristina Fernandes, no Valor.

A verdadeira terceira via

A ameaça de explosão da propinolândia do Ministério da Saúde e o purgatório do presidente Jair Bolsonaro com seu derretimento nas pesquisas de opinião alimentam a cajadada do semipresidencialismo.

Seus maiores defensores são o ex-presidente da República Michel Temer e o ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes, que chegaram a escrever uma proposta de emenda constitucional juntos. Uma congênere desta proposta, com mais poderes para o presidente do que a da dupla, já tramita no Senado com a assinatura de representantes de todos os partidos da Casa.

Duas mitigações do presidencialismo já foram derrubadas em consultas populares em 1963 e em 1993. Se vingar, desta vez, terá sido por obra e graça do vice-presidente Hamilton Mourão e do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O primeiro por ser tão indesejável, pelo Congresso, quanto Bolsonaro o é no país e o segundo por aparecer, a cada pesquisa, mais bem posicionado para derrotar o presidente. Além de ponto de fuga para um Congresso que rejeita o impeachment, o semipresidencialismo resolveria o problema de uma terceira via sem voto.

Vigente em mais de 50 países, o modelo que inspira Temer e Gilmar aproxima-se daquele vigente em Portugal e na França, onde o presidente é eleito pelo voto direto, escolhe, a partir da maioria congressual, o primeiro-ministro, e, por indicação deste, os integrantes do governo. Ainda chefia as Forças Armadas, conduz a diplomacia, escolhe ministros de tribunais superiores e embaixadores, tem direito de veto e sanção e dissolve o gabinete em situação de crise. Temer rifou a figura do ministro-coordenador que, na proposta original, não precisaria ser originário do Congresso.

Com um governo claudicante e uma geração de generais educada na base dos tuítes ameaçadores contra aquele que lidera as pesquisas, o paralelo com o parlamentarismo imposto a João Goulart depois da renúncia de Jânio Quadros, é evidente. Sua implementação, a partir de 2026, com referendo, derrubaria a comparação e ainda responderia ao reclamo de um presidente que, apesar de encurralado, tem direito à reeleição conquistado pelo voto.

A precipitação da crise, porém, Temer o reconhece, abre uma oportunidade mais imediata para o semipresidencialismo. Gilmar Mendes já viu emenda constitucional gorar uma eternidade ou ser aprovada de um dia para o outro. Além de escândalos que se atropelam, o empurrão viria da governabilidade deteriorada por um modelo de emendas parlamentares que se esgotou.

A balbúrdia das emendas extra-orçamentárias chegou ao ponto de os dois partidos que requisitaram ações no Supremo para suspender a execução do chamado “orçamento secreto”, o PSB e o Cidadania, terem voltado atrás por pressão de seus pares no Congresso. Além de não ter sido aceita pela relatora, ministra Rosa Weber, a desistência levou à desfiliação do senador Alessandro Vieira (SE) do Cidadania. Há, no Congresso, quem aposte que a suspensão das emendas a serem executadas em 2021 teria um potencial mais destrutivo sobre a base do governo do que o circo da CPI.

A obrigatoriedade e os valores das emendas cresceram à medida que os presidentes, Temer inclusive, foram encurralados pelo Congresso. A ponto de os parlamentares hoje superarem, com os recursos à sua disposição, a capacidade de investimento do Executivo. Usufruem do bônus de governar sem ter que arcar com o ônus de se responsabilizar por atos e gastos.

Para não falar do impacto fiscal, não apenas das emendas, mas dos projetos que o Congresso remenda e aprova como quer. Derruba veto presidencial à desoneração da folha de salários das empresas sem a devida previsão orçamentária e privatiza a Eletrobras com aumento de despesa da União, exemplifica o deputado Rodrigo Maia (sem partido-RJ), outro convertido ao semipresidencialismo.

Desde que publicou um artigo sobre o tema, em 12 de junho, em “O Estado de S. Paulo”, Temer tem sido consultado por empresários sobre a viabilidade política do semipresidencialismo. Maia não descarta que a reunião dos 11 partidos de centro-direita contra o voto impresso, possa vir a ser um embrião da defesa da proposta. É nos dois polos que hoje lideram a política nacional, porém, que a fagulha custa a acender.

Bolsonaro entrega tudo o que resta no governo mas não acata uma mudança do gênero, diz uma liderança governista. Lula também custaria a aceitar uma mitigação dos poderes que o partido tem chances crescentes de conquistar em 2022. Defensores da proposta dizem que a mudança evitaria que o PT revisitasse o inferno vivido nas crises de seus mandatos, mas, no partido, a ideia é vista como se a devolução dos direitos políticos de Lula tivesse servido de bode na sala para a aprovação da mudança no sistema de governo.

Em 1993, Lula chegou a discutir com o PSDB apoio ao parlamentarismo, mas o PT o dobrou com a defesa do presidencialismo. Há, por isso, no partido, quem ache que o ex-presidente toparia o acordo em nome do apaziguamento. A hostilidade no mercado pode ser medida pela divulgação de notícia falsa dos filhos do presidente sobre a idoneidade das melhores pesquisas eleitorais da praça que atestam a franca vantagem petista. No círculo mais próximo de Lula, porém, a aposta é que, além de o ex-presidente não querer abrir mão de governar com plenos poderes, seus apoiadores se sentiriam traídos.

Flávio Dino, governador do Maranhão, recém-filiado ao PSB e aliado de Lula, votou pelo parlamentarismo em 1993 e aprova o modelo proposto por Temer e Gilmar mas não vê viabilidade política para sua aprovação. De engenhoso, diz, acabaria sendo visto como arranjo, arremedo, tampão.

De todas as dúvidas em torno da saída proposta a mais irrefutável é a percepção de que o semipresidencialismo acabaria por eternizar no poder uma maioria parlamentar que, desde o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, tem aprovado uma agenda contrária ao programa do pré-candidato a presidente que lidera as pesquisas. O ministro Gilmar Mendes tem argumentado que caberia ao presidente arregimentar puxadores de votos para os partidos aliados de maneira a fazer a maioria parlamentar. O problema é que as regras para a eleição dessas bancadas serão feitas num Congresso dominado pelo Centrão. O bloco, portanto, teria todas as condições para impor as regras por meio das quais se eternizaria no poder. 

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