| Gravura de Theodor de Bray. Fonte: Bartolomé de las Casas. 1598. Brevísima relación de la destrucción de las Indias. (Reprodução) |
Os valores universais são um catálogo que pode ser consultado por todos, mas só as potências hegemônicas decidem o que entra nele
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Uma das características do pensamento dominante consiste em contrastar os princípios que subscreve com as práticas dos que se lhe opõem. Na época moderna, tudo começou com a expansão colonial do século XV e XVI pela mão dos portugueses e dos espanhóis sob a tutela do Vaticano. Missionários, descobridores, conquistadores anunciavam a “boa nova” de uma religião tida por única e e a única verdadeira, cujos princípios garantiam a igual dignidade de todo o ser humano perante a criação divina e o direito de todos a libertarem-se da superstição e a abraçarem a nova civilização, e a aceder a todos os benefícios que dela decorriam. A suposta qualidade universal dos valores de que eram portadores era tão saliente quanto evidente era o contraste entre eles e as práticas das populações nativas, práticas consideradas selvagens, bárbaras, primitivas, canibais, pecadoras, cuja erradicação justificava a “missão civilizadora”. Uma linha abissal separava de tal modo os princípios e os valores europeus dessas práticas que as populações nativas não podiam ser sequer consideradas plenamente humanas. Por isso, não tratar as populações segundo esses princípios não só não era contraditório como era a única solução lógica. Se eram sub-humanos, não fazia sentido aplicar-lhes os princípios e valores próprios de seres plenamente humanos. A universalidade dos princípios era afirmada ao ser negada a sua aplicação a seres sub-humanos. Em relação a estes, o importante era evangelizá-los, levá-los a abandonar as práticas selvagens, o que se tornou mais fácil e convincente depois que o Papa Paulo III reconheceu em bula de 1537 que os índios tinham alma.
Este dispositivo colonizador realizava duas operações cruciais:
impedia o reconhecimento de princípios e valores diferentes dos
europeus; impedia contrastar os princípios e valores europeus com as
práticas dos europeus. Tratava-se de uma nova versão de universalidade
feita de duas ressalvas que a negavam, mas cuja negação era eficazmente
invisibilizada. Basta ler a Brevísima relación de la destrucción de las Indias
de Bartolomé de Las Casas, publicada em Sevilha em 1552, para termos
uma ideia de como este dispositivo operou, e os crimes, atrocidades,
destruições e pilhagens que ele justificou. Las Casas mostra de modo
eloquente as duas verdades ocultadas pelo dispositivo colonial. Por um
lado, o contraste chocante entre os princípios proclamados pelos
conquistadores europeus e as suas próprias práticas; por outro lado, o
retrato falso ou parcial das práticas indígenas e a recusa dos europeus
em reconhecer que esses povos tinham princípios e valores que
rivalizavam, por vezes com vantagem, com os europeus. Tanto o escândalo
da obra de Las Casas ao tempo em que foi publicada como o sucesso que
veio a ter no século seguinte mostram em que medida o dispositivo
colonial próprio do pensamento dominante europeu, apesar de
desmascarado, continuou a vigorar como que animado por uma hipocrisia
estrutural que, em vez de o enfraquecer, se transformou em sua fonte de
vida. Até hoje.
Do ponto de vista da sua génese, os princípios e valores universais
europeus (mais recentemente também ditos ocidentais) são uma contradição
nos termos porque, se são europeus, não podem ser considerados
universais e, se são universais, não são europeus. Mas esta contradição é
provavelmente própria de outros princípios e valores não europeus. E o
mesmo pode dizer-se da hipocrisia ou duplicidade estrutural que habita
quaisquer conjuntos de princípios e valores formulados em abstrato. O
que distingue os princípios europeus é o domínio político, económico e
cultural do conjunto de países que desde o século XV-XVI se arrogaram o
direito de os reclamar como seus e de os impor aos outros sob o pretexto
de serem universais. Esse conjunto variou ao longo dos séculos. Começou
por ser ibérico, depois foi europeu, e é euro-norte-americano desde o
fim da Primeira Guerra Mundial. Merecem, pois, uma reflexão específica.
São muitos os dispositivos que asseguram a duplicidade e a põem ao
serviço dos interesses da potência hegemônica.
(1) Fazer valer universalmente os valores universais é um dever dos
povos que os reconhecem como seus. A imposição, mesmo que motivada por
interesses próprios, deve ser sempre legitimada por razões benévolas e
do interesse das próprias vítimas da imposição. Foi com esta
justificação que o direito internacional emergiu, pela pena de Francisco
de Vitoria (1483- 1546), para justificar a ocupação colonial de povos
que, apesar de humanos, não se sabiam governar (tal como as crianças) e
deviam, por isso, ser objeto de proteção e tutela por parte dos
colonizadores.
(2) A hierarquia de valores. Todos os valores são universais, mas uns
são mais importantes que outros. Com John Locke (1632-1704), nos
alvores do capitalismo, o direito de propriedade individual precede
todos os outros. Ainda que Locke limitasse inicialmente o direito
natural de propriedade aos frutos do trabalho, esse direito foi-se
estendendo até abranger tudo o que fosse necessário para a produção, e
esta consiste na criação de valores de troca. Desde então, a hierarquia
entre os valores depende das conveniências conjunturais de quem a pode
impor. Se nuns casos é prioritária a defesa da soberania dos Estados,
noutros é-o a defesa da auto determinação dos povos. Por sua vez, a
segurança nacional (um conceito recente que veio substituir o conceito
de segurança humana) tem vindo a prevalecer sobre os direitos e
liberdades da cidadania, tal como a segurança alimentar se tem vindo a
impor à soberania alimentar.
(3) A seletividade e os critérios duplos na invocação dos valores
universais. Entre 1975 e 2000, os média globais silenciaram as atrozes
violações de direitos humanos do povo timorense (acabada de conquistar a
independência contra o colonialismo português) por parte da Indonésia,
que invadiu o país poucos dias depois da visita de Henri Kissinger a
Jacarta. Para os EUA, a Indonésia era na altura um país estrategicamente
importante para travar o avanço do comunismo na região, e esse fato
justificava o sofrimento imposto aos timorenses. Na atual guerra da
Ucrânia, muitos crimes de guerra terão sido cometidos por ambas as
partes. Mas o silêncio sobre crimes cometidos por tropas ucranianas
contrasta com o incessante noticiário sobre os crimes das tropas russas.
Passou despercebida a notícia de 13 Maio no insuspeito Le Monde: tinha
acabado de confirmar a autenticidade do vídeo em que soldados ucranianos
matam a sangue frio prisioneiros de guerra russos desarmados, um
gravíssimo crime de guerra nos termos da Convenção de Genebra. Veremos
se será punido como todos os outros que tenham sido cometidos. A mesma
seletividade ocorre no caso de outro valor universal, o direito à
auto-determinação dos povos. Como temos visto, em alguns casos ele é
justamente defendido (o caso da Ucrânia), enquanto noutros ele é
injustamente negado (casos da Palestina e da República Árabe Saaraui
Democrática).
(4) O caráter sacrificial da defesa de valores, isto é, a necessidade
de os violar para supostamente os defender. Foi em nome da democracia e
dos direitos humanos que se invadiu um país soberano, o Iraque, e se
cometeram gravíssimos crimes de guerra, hoje documentados graças às
revelações da Wikileaks. O mesmo se passou no Afeganistão, Síria, Líbia
e, anteriormente, no Congo-Kinshasa, Brasil, Chile, Nicarágua,
Guatemala, Honduras, El Salvador, etc. Mas tudo começou muito antes,
desde os primórdios do colonialismo. O genocídio dos povos indígenas foi
sempre justificado para os salvar de si mesmos. E Afonso de
Albuquerque, segundo Governador da Índia, sempre justificou a conquista
do comércio das especiarias, até então controlado pelos comerciantes
muçulmanos, como uma vitória da cristandade sobre o Islã.
(5) A importância de manter o monopólio sobre os critérios para
decidir sobre situações normais e situações de emergência ou de exceção,
sendo certo que nestas últimas é legítimo violar alguns dos princípios e
valores universais. Depois dos ataques às Torres Gémeas de Nova Iorque,
muitos países foram levados a adoptar, independentemente das condições
locais, medidas excepcionais de luta contra o terrorismo, nomeadamente a
promulgar novas normas de criminalização do terrorismo (o “direito
penal do inimigo”) que violam os princípios constitucionais do primado
do direito. Muitos países aproveitaram esta legislação de exceção para
eliminar ou neutralizar adversários políticos, agora considerados
terroristas. Foi o caso dos militantes indígenas Mapuches do Chile por
defenderem a integridade dos seus territórios.
(6) A interpretação legítima dada aos valores universais é a que é
ratificada pela potência hegemónica do momento. As liberdades
autorizadas justificam a repressão das liberdades não autorizadas.
Sabe-se hoje que o regime da Líbia foi violentamente eliminado porque o
General Kadhafi pretendia dar consistência política à União Africana e
substituir o dólar nas transações de petróleo. Da mesma forma, muitos
países, sobretudo latinoamericanos, centro-americanos e asiáticos, sabem
por trágica experiência que eleger democraticamente os seus presidentes
não os protege de interferências, golpes e mesmo imposição de
ditaduras, se os EUA virem na eleição uma ameaça aos seus interesses
econômicos ou geo-estratégicos.
(7) Quando não é possível silenciar as violações dos valores
universais por parte de aliados da potência hegemónica, tais violações
devem ser trivializadas ou justificadas por referência a outros valores
supostamente superiores. A ocupação colonial e ilegal da Palestina por
parte de Israel—uma das mais graves violações do direito internacional
dos últimos sessenta e cinco anos—tem beneficiado de muitas
justificações diretas ou indiretas por parte da Europa (incapaz de
enfrentar de forma mais honesta as suas responsabilidades históricas) e
por parte dos EUA (“Israel é o único país democrático da região”).
Crimes de Estado, como o recente assassinato da jornalista palestiniana
Shireen Abu Akleh, não merecem mais que uma nota de pé de página, mesmo
se tais crimes obedecem a um padrão. Segundo o Ministério da Informação
da Palestina, 45 jornalistas foram assassinados por forças israelenses
desde 2000.
(8) Expor documentadamente a violação dos valores universais por
parte de quem os advoga e, com isso, a hipocrisia e a duplicidade
reinantes é considerado um ato inimigo e suscita uma reação implacável
que nenhum valor universal pode limitar. Nem sequer o direito à vida.
Julian Assange é hoje o símbolo vivo desta duplicidade. Ter exposto os
crimes de guerra cometidos no Iraque e ter defendido o anonimato das
suas fontes transformou-o num alvo a abater sem dó nem piedade. Com a
sua ação, Assange defendeu um dos valores universais, o direito à
informação e à liberdade de expressão. Os crimes que denunciou deviam
ser de imediato investigados e punidos em tribunais nacionais e
internacionais. Em vez disso, é ele quem é punido e será provavelmente
eliminado. Em vídeo recente, a sua esposa declara ter informações de que
a CIA planeia matá-lo se não for extraditado para os EUA. De todo o
modo, nas condições em que se encontra, a sua morte nunca será uma morte
natural.
(9) Os valores universais são um catálogo que pode ser consultado por
todos, mas só as potências hegemônicas decidem o que entra nele. Por um
lado, são considerados ocidentais valores e princípios que muitas vezes
na sua origem não são europeus. A sua apropriação quase nunca decorre
de diálogos interculturais horizontais, antes envolve frequentemente
distorções e seletividades ideológicas. A filosofia grega, que todos
prezamos, só em meados do século XIX foi considerada patrimônio
exclusivo e distintivo da Europa. Até então era consensual reconhecer as
suas raízes na cultura antiga do norte de África, nomeadamente de
Alexandria, e da Pérsia. Também se reconhecia que, sem a cooperação da
cultura árabe muçulmana, a filosofia grega não teria chegado ao nosso
conhecimento: da Casa da Sabedoria da dinastia dos Abássidas em Bagdad
no século IX até à escola de tradutores de Toledo dos séculos XII e
XIII. Também o Cristianismo é considerado um património ocidental,
apesar de ter nascido no que é hoje o Próximo Oriente.
Por outro lado, desde o século XVI não são admitidos no catálogo dos
valores universais contribuições não ocidentais que não se deixem
submeter a apropriação (melhor, expropriação). A razão desta situação
resulta, como referi, do domínio global, económico, social, político e
cultural do mundo europeu desde o século XV-XVI. Num momento em que a
China emerge como uma potência capaz de disputar o domínio global
ocidental, é oportuno perguntar por quanto tempo o catálogo dos valores
universais vai ficar sob domínio ocidental e com que consequências. As
transformações não serão necessariamente para melhor, e podem até ser
para muito pior, sobretudo para a região cultural que até agora dominou o
mundo. É inquietante imaginar que os países ocidentais sejam amanhã
quem sofre com a duplicidade e hipocrisia dos valores universais em mãos
de novos “donos”.
É possível que a caricatura degradante que o ocidente fez do oriente
(uma caricatura denunciada por Edward Said em Orientalism) seja amanhã
substituída pela caricatura igualmente degradante que o oriente fará do
ocidente (o Ocidentalismo)? Passar-se-á do eurocentrismo ao
sinocentrismo? Ou poderemos finalmente aspirar a um mundo sem pontos
cardeais nem centros hierárquicos onde a diversidade cultural, política e
epistémica seja possível, sob a égide de valores emancipatórios que não
se deixem violar segundo as conveniências de quem tem mais poder?
Publicado originalmente no Jornal de Letras (Portugal)
(*) Diretor Emérito do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e Coordenador do Observatório Permanente da Justiça.
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