Ilustração: Mihai Cauli
Ilustração: Mihai Cauli

De Machado e Euclides da Cunha a Francisco de Oliveira, muitos autores tentaram compreender dualidade entre o Brasil moderno e o arcaico. Ela está de volta, porém agravada: agora, banditismo e grupos fanáticos espalham-se pelas áreas costeiras


Por Marcio Pochmann
outraspalavras.net
5–7 minutos

O país ainda era escravista e agrário quando Machado de Assis introduziu o horizonte da pluralidade de Brasis, menos de quatro décadas após ter alcançado a Independência nacional. Em sua última coluna no Diário do Rio de Janeiro do ano de 1861, o grande escritor escreveu: “O país real, esse é bom, revela os melhores instintos; mas o país oficial, esse é caricato e burlesco”.

Esta perspectiva analítica prosseguiu concomitante com o avanço das transformações nacionais. Quase um século depois, quando a transição do agarismo para a sociedade urbana e industrial se consolidava, a imagem de países diversos vivendo num só ganhou maior evidência.

O livro de Jacques Lambert (1891-1948) Os Dois Brasis, de 1957, e o de Roger Bastide Brasil: terra de contrastes, de 1964, recuperaram e renovaram a interpretação de que o país que se industrializava, guardava também consigo traços da desigualdade herdada do longevo e primitivo agrarismo. O mesmo sentido da dualidade nacional terminou sendo renovado por outros autores, como Edmar Bacha no livro Belíndia 2.0: fábulas e ensaios sobre o país dos contrastes (2012).

Mas essa interpretação acerca de um país dividido em torno da modernidade consumista e do progresso material separado do atraso econômico e da pauperização sofreu contundentes críticas. Já em 1972, por exemplo, o livro Crítica à razão dualista de Francisco de Oliveira destacou que a existência de contrastes no país não refletiria mundos distintos, pois expressaria a natureza das relações desiguais e combinadas entre si no âmbito da periferia do capitalismo mundial.

Nesse mesmo sentido, Pierre Bourdieu, no livro O poder simbólico (2010), criticou o conjunto de falsas dualidades encontradas no âmbito das ciências sociais por decorrência da ignorância acerca da formação relacional do mundo. Com isso, a disputa pelo monopólio da autoridade de impor visões parciais da realidade social como critério de verdade, muito próprio do pensamento único, acentuou-se durante o predomínio do neoliberalismo.

De forma pioneira e distinta, Euclides da Cunha interpretou a realidade nacional sob os sintomas do abandono e esquecimento dos povos originários e miscigenados. Sob o domínio do capitalismo nascente, o conjunto dos brasileiros foi sendo exposto a distintas dinâmicas econômicas, políticas e culturais na vasta extensão territorial no final do século 19.

Enquanto as regiões litorâneas evidenciavam certa opulência, derivada da parcial internalização do moderno padrão de consumo capitalista, o restante do Brasil interiorano amargava a escassez material, o iletramento e a má nutrição. Voltadas para a Europa e de costas para o interior, as elites políticas e intelectuais litorâneas da época inauguravam as novas instituições da República, desconhecendo as agruras do modo de vida do povo pobre interiorano, cada vez mais exposto ao avanço do banditismo social e do fanatismo religioso, base do antigo sistema jagunço agrarista.

Com a passagem para sociedade urbana e industrial entre as décadas de 1930 e 1980, os Brasis começaram a se identificar, convergindo em direção desenvolvimentista. A redução nas distâncias no interior do sistema produtivo, complexo e integrado e de organização do trabalho assalariado, aliado a direitos sociais e políticas públicas, mostrou ser fundamental para a construção da nação.

Tudo isso, contudo, sofreu enorme retração desde o ingresso atabalhoado na globalização, cuja desindustrialização foi acompanhada por uma economia financeirizada e de especialização primário-exportadora. Com isso, há a inversão da antiga radiografia brasileira de Euclides da Cunha relativa ao final do século 19 entre o litoral enriquecido e os rincões pobres do interior.

Depois de mais de três décadas de estagnação na renda per capita, a primarização produtiva e a geração de uma ampla população sobrante, as regiões litorâneas é que passaram a concentrar a pauperização, o desemprego aberto e oculto em pleno começo do século 21. O interior, em grande medida constituído desde o interior de São Paulo, passando pelo Centro-Oeste até avançar a uma parte da Região Norte, revela o que há de dinâmico na economia primário-exportadora, impulsionando investimentos e consumo.

É por isso que emerge o novo sistema jagunço, mais voltado às áreas litorâneas. Através do crime organizado, o banditismo social se reproduz, assim como o fanatismo religioso toma conta dos centros metropolitanos do país, revelando a natureza do capitalismo atual na promoção dos diversos Brasis.

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