O Estadão só não é bolsonarista declarado e juramentado porque Bolsonaro não quer saber do Estadão. A velha guarda do jornalismo da ditadura sabe que, apesar de subserviente, é esnobada pelo novo fascismo.

Moisés Mendes
diariodocentrodomundo.com.br
6–8 minutos
“Notícia” veiculada pelo Estadão nesta segunda-feira (10). Reprodução
“Notícia” veiculada pelo Estadão nesta segunda-feira (10). Reprodução

O Estadão descobriu que o governo usa as redes sociais para defender seus planos e suas ideias e para se defender dos ataques dos agressores, entre os quais o próprio Estadão. E descobriu ainda que a estrutura do Planalto de aproveitamento das redes usa formas de planejamento e de ação que o próprio Estadão usa como jornal. Que estudantes usam.

O Estadão é um descobridor. A reportagem, que se esforça para ter um tom de denúncia, descobriu que a Secretaria de Comunicação do governo tenta identificar uma pauta diária a partir do que considera temas que exigem ações no momento.

Não seria uma eureca nem nos primeiros jornais de poste da era de Gutenberg. Mas o Estadão descobriu que governo e aliados do governo tentam trabalhar nas redes os assuntos da ordem do dia, como se o Diário de Sorocaba, a Folha de Barbacena e a prefeitura de Quaraí não fizessem o mesmo. Fazem há décadas, pelo menos desde a primeira metade do século 20.

Mas o que o Estadão quis sugerir é que há uma equivalência entre as estruturas de comunicação de Lula e do gabinete do ódio de Bolsonaro. Essa insinuação aparece na chamada de capa da reportagem sobre o que seria o ‘gabinete da ousadia’ do Planalto: “Entenda como funciona a versão petista do gabinete do ódio, que pauta redes e influenciadores governistas”.

Por que tentar estabelecer uma falsa equivalência entre os gabinetes paralelos de comunicação do fascismo e as estruturas formais, legais e oficiais do governo Lula? Para dar a entender que tudo é a mesma coisa.

O Estadão sabe que o gabinete criminoso liderado por Carluxo, e sob investigação há cinco anos, produzia ódio, difamação e mentira. E que a comunicação de Lula, sob gestão do ministro Paulo Pimenta, não teria nem como – mesmo que tomada por imbecis – tentar fazer algo parecido.7

Carlos Bolsonaro, o vereador do Rio acusado de liderar o “gabinete do ódio” na gestão anterior. Reprodução
Carlos Bolsonaro, o vereador do Rio acusado de liderar o “gabinete do ódio” na gestão anterior. Reprodução

O Estadão sabe que não se pode dizer, para dar um exemplo, nem que Globo e Estado são hoje a mesma coisa. As condutas são diferentes, mesmo que nos detalhes, mas são diversas, inclusive na abordagem de pautas que envolvam o governo.

Um exemplo concreto e de fundo de diferentes condutas entre as duas corporações. Quando a Globo mandou William Waack embora, em 2017, por falas racistas, o Estadão acolheu logo o jornalista dispensado.

Em 2016, Waack havia se referido a um motorista que buzinava diante da Casa Branca como alguém que fazia “coisa de preto”. Não sabia que sua fala, antes de uma entrada ao vivo, estava sendo gravada no estúdio da Globo e seria depois vazada.

Por que o Estadão protegeu um jornalista mandado embora de outra empresa por comportamento racista? Porque os valores da Globo e do Estadão podem convergir em questões essenciais, mas divergir em detalhes que não são pouca coisa.

O Estadão, com seus valores flexíveis, acolheu o jornalista que a Globo não quis por manchar sua imagem. O demitido até poderia ter ficado na Globo, se o caso não tivesse vazado e se tornado público. Mas Waack foi sacrificado a partir do momento em que passou a ser visto como racista.

Para a Globo, foi o limite. O Estadão, com seus largos valores humanistas, acolheu Waack e desde então tem o jornalista como uma das suas estrelas. Está lá, protegido, com chamadas de capa quase diárias para textos que invariavelmente atacam Lula.

A chamada abaixo continuava nessa segunda-feira na capa da versão online. Estava lá desde 5 de junho, como pão velho, porque projeta, dois anos e meio antes, o que poderia ser o fim de Lula: ”Velha guarda petista está pessimista quanto às chances de Lula nas eleições de 2026”.

O tratamento a petistas históricos como ‘velha guarda’ ajuda a denunciar a linguagem da velha guarda da direita do jornalismo, que também transpira machismo. Waack acrescenta: “Grupo se ressente abertamente do fato da mulher do presidente ter ocupado funções anteriormente a cargo dos profissionais da política”.

O grupo não só se ressente, como se ressente abertamente. O jornalista que vê coisa de preto até em buzinaços tem a garantia do Estadão de que é intocável na missão de atacar Lula e a mulher de Lula e a fingir que faz média com veteranos da esquerda.

É um caso que acaba por ajudar a diferenciar o Estadão da colega Globo num aspecto essencial para que sejam confrontadas posturas da grande mídia em tempos de fascismo. Pois esse Estadão, com esses valores, descobriu agora que o governo Lula descobriu as redes sociais.

E assim tenta desqualificar o trabalho de profissionais da área da comunicação, para que ações políticas (sim, comunicação é ação política) sejam confundidas com bandidagens das facções que agiam dentro do Planalto até 2022.

O Estadão apenas prova que é preciso ampliar e aperfeiçoar estruturas capazes de oferecer respostas à antiga direita absorvida pela nova extrema direita também entre corporações de mídia.

O Estadão só não é bolsonarista declarado e juramentado porque Bolsonaro não quer saber do Estadão. A velha guarda do jornalismo da ditadura sabe que, apesar de subserviente, é esnobada pelo novo fascismo.

Publicado originalmente no blog do autor

 

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