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Por RAUL PONT*
Já é possível fazer um balanço, uma avaliação do ocorrido no Rio Grande do Sul, que vá além da crise humanitária que daí decorre e da necessária prioridade do atendimento às vítimas
1.
Após semanas sofrendo os efeitos de uma tragédia climática singular, histórica, sempre comparada com outra cheia semelhante há quase um século atrás, já é possível fazermos um balanço, uma avaliação do ocorrido, que vá além da crise humanitária que daí decorre e da necessária prioridade do atendimento às vítimas. Desde o socorro imediato ao paliativo dos abrigos, do apoio material e financeiro aos atingidos, a sua alimentação e as precauções exigidas nos cuidados da saúde individual e cole.
A iniciativa de ajuda, apoio e solidariedade aos atingidos pelas comunidades em cada município foram e são exemplares do espírito comunitário, fraterno e humano da nossa gente. Ao par disso, espera-se, exige-se que o poder público, os entes federados, cumpram também seu papel nas crises com suas estruturas de defesa civil, de serviços públicos básicos e de assistência social conforme previsto nas leis, na nossa Constituição, que abriga e determina a existência de órgãos e instituições preparadas para possíveis catástrofes como estamos vivendo.
Fenômenos como estamos sofrendo podem ser seculares mas existem e temos que prevê-los como possíveis com conhecimento histórico acumulado, planejamento e ações que os evitem ou minorem, ao máximo, suas consequências.
Os municípios foram atingidos de formas distintas pelas chuvas de maio. Alguns perderam casas, escolas, estradas, pontes e instalações essenciais para suas economias e mobilidade social. Outros foram invadidos pela torrente violenta das águas fora de seus cursos normais destruindo bairros inteiros.
Vários municípios lindeiros a esses cursos d’água nos vales dos rios Taquari, Jacuí, Caí, Paranhana, Sinos e outros sofreram esse tipo de situação e suas comunidades e poder público necessitam acordar e respeitar planos diretores, ampliar suas áreas verdes e de amortecimento das chuvas, respeitar e valorizar as matas ciliares dos arroios e rios, valorizar o planejamento racional urbano e rural em detrimento da especulação imobiliária e da ocupação sem freios nem limites da exploração agrícola predominantes.
Em muitos deles, impõe-se o debate profundo, sério e racional nas Câmaras Municipais, para aprovar diretrizes e normas que reorientem a reconstrução de seus municípios com precauções que evitem ao máximo novos desastres. Com políticas de financiamentos públicos federais e estaduais, com projetos conjuntos de bacias comuns, com planejamento integrado, as comunidades podem superar a tragédia, fortalecendo novas oportunidades de retomada da economia e do emprego.
2.
No caso de Porto Alegre e em outras situações como Canoas, a situação não é a mesma e as consequências para comunidades de vários bairros não foram geradas pela surpresa da enxurrada, da violência repentina de chuvas torrenciais. Vários bairros da capital inundaram lentamente pela cheia do lago Guaíba. Assim como alguns fatores reunidos criaram as condições para chuvas bem acima da média, a capacidade de vazão do lago Guaíba também depende de outros fatores. Todos difíceis de prever em ação conjunta. Mas, outros são previsíveis, estão ou deveriam estar sob controle do poder público e no caso da capital a inundação teve a ver muito mais com isso do que com a violência das águas ou o volume das chuvas.
Porto Alegre desde os anos 1970 é dotada de um sistema protetivo de diques e muro na área do Cais Mauá que a protegem de cheias do Guaíba e um conjunto de casas de bombas encarregadas de retirar da área urbana as águas que se acumulam com as chuvas que aqui ocorrem. Essas instalações estão ao longo da cidade, dique da BR 290 ao norte e ao sul, avenidas Edvaldo Pereira Paiva e Diário de Notícias.
Além dessa base principal, ao longo de anos a cidade foi aperfeiçoando o sistema com instalações e melhoria de vazão também nos arroios internos que correm no município, canalizações em áreas já construídas e grandes condutos forçados para que regiões mais planas não sofram os volumes pluviais das regiões mais altas como é o caso do hoje atingido 4º distrito e seus bairros.No período da Administração Popular, graças ao Orçamento Participativo, a participação direta da população decidiu a prioridade de centenas dessas obras resolvendo problemas históricos que a cidade vivia com seus arroios internos e sem descuidar do sistema principal, as casas de bombas, as comportas do muro do Cais Mauá e a conservação dos diques.
O Plano Diretor de Drenagem Urbana era socializado com a comunidade para que as obras aprovadas estivessem dentro de um planejamento que envolvia toda a cidade e se integrava com os trabalhos da Metroplan, órgão estadual, sobre a região metropolitana sem a qual é impossível pensar apenas a capital. Viamão, Alvorada, Gravataí, Cachoeirinha são municípios totalmente ligados a Porto Alegre numa política de preservação de rios e arroios e drenagem urbana.
O grande projeto protetivo da região metropolitana onde está Porto Alegre nunca foi totalmente efetivado. A extinção do antigo Departamento Nacional de Obras de Saneamento (DNOS) pelo governo Collor em 1990 deixou uma lacuna em obras desse porte e que envolvem regiões com vários municípios. O órgão que herdou essa missão no Rio Grande era a Metroplan, encarregada de pensar as políticas regionais complexas. Possui um Plano Diretor nesse sentido que não foi priorizado e o órgão foi liquidado no governo Leite restando apenas como fiscalizador do transporte coletivo intermunicipal na região.
3.
O que ocorreu, então, em Porto Alegre, nessa cheia? Qual a razão das consequências brutais para milhares de cidadãos e cidadãs perderem seus bens, sua condição de vida, seu trabalho?
Mesmo com o extraordinário volume de chuvas na região dos rios que formam o estuário do Delta do Jacuí, os diques principais e o muro do Cais não foram ultrapassados em sua cota máxima. Vários bairros foram inundados porque o sistema de proteção não funcionou. Casas de bombas não funcionaram, as comportas vazaram e até não suportaram a pressão. Os condutos forçados do 4º Distrito romperam as tampas de inspeção e como algumas casas de bombas jorravam água do lago para dentro da cidade ao invés de cumprir sua função de expulsá-las, grande parte da cidade transformou-se num lago crescente pois mesmo no intervalo das chuvas, com uma baixa do lago, a simples gravidade não era capaz de devolver a água acumulada na cidade pois o sistema de bombas já estava mais inoperante pois também tinha sido inundado.
Esse episódio revelou talvez a cena mais reveladora da incompetência, da inoperância, da estupidez da atual gestão. Arrancaram uma das comportas na av. Mauá com um rebocador, para gáudio do prefeito e outros que vibraram com a saída parcial das águas e, no dia seguinte, com nova elevação do lago, correram às pressas, para fechar o muro com sacos amontoados. É a mais fiel fotografia de um governo inapto e irresponsável. Mas, o que ocorreu não se deve apenas a esses momentos de desespero e incompetência.
Na campanha eleitoral de 2020, o atual prefeito Sebastião Melo criticava duramente seu adversário e antecessor, porque o mesmo não tinha usado a disponibilidade de recursos federais na ordem de mais de 100 milhões para reformar e atualizar o sistema protetivo: muro, diques, comportas, casas de bombas. Pior, o prefeito Nelson Marchezan Jr. não só não fez nada, não usou o recurso e, mais, extinguiu o órgão, o Departamento de Esgotos Pluviais (DEP). Órgão autônomo, com nível de Secretaria, exatamente porque tratava de uma cidade peculiar, com grande parte ocupada ao lago e com cota de altura semelhante.
O governo atual portanto sabia do problema e criticava o anterior por não ter pego o recurso nem feito a obra necessária. Todo o sistema de bombeamento tem plantão 24 horas ao dia. Como não saber da manutenção, de avarias, reformas?
Agora, o governo de Sebastião Melo não aceita crítica política e teve a desfaçatez de afirmar, publicamente, que a responsabilidade e a culpa tem que ser dividida entre “prefeitos que a cidade teve depois da construção do muro”. Cinco ex-prefeitos em nota pública repudiaram a leviandade do prefeito Sebastião Melo e se solidarizaram com a manifestação de dezenas de especialistas, técnicos, professores universitários e ex-dirigentes do DEP e do DMAE que já haviam exposto suas críticas a atual gestão pela falta de manutenção e descaso com o sistema protetivo.
O problema não é pessoal, deste ou daquele prefeito. A questão hoje é a visão predominante nesses governos neoliberais movidos pela irracionalidade do mercado e pela acumulação capitalista desenfreada a qualquer custo, que não se submete ao interesse coletivo, ao respeito à natureza e ao meio ambiente.
Recentemente, o governador Eduardo Leite – que liquidou com a Metroplan – ao fazer propaganda de mais uma das suas privatizações, o leilão de concessão do Cais Mauá, com a possibilidade dos “sagrados” empreendedores fazerem ali espigões acima do gabarito do Plano Diretor, “fazendo investimentos de mais de 1,5 bilhão de reais”, afirmava sorrindo “sem ter aquele muro que dividia o antigo porto da cidade”.
Para Eduardo Leite, o muro é um trambolho, que está ali como um capricho fora de lugar, sem função pública protetiva da cidade, da sua história.
O mesmo comportamento vivemos quando do episódio da permuta de área pública que viabilizava a construção da Arena do Grêmio, no bairro Humaitá, hoje uma das maiores vítimas das cheias de maio. Nossa bancada condicionou o voto ao projeto desde que ao empreendedor fosse exigido obras de drenagem, abertura de vias e mobilidade urbana diante da dimensão da obra e do conjunto de espigões incluídos. Apesar da lei, nem Estado nem Município fizeram as exigências. Precisou o Ministério Público acionar o Município e a empresa em processo judicial que se arrasta até hoje sem as obras necessárias. A Arena e o bairro estão alagados.
Vamos torcer para que novos desatinos não sejam realizados. Na imprensa, o governador já alardeia que vai contratar consultorias internacionais, fala-se numa especializada em furacões nos EUA e grandes negócios no Brasil da Lava-Jato.
Por que não retomar os estudos, projetos e planos já existentes? Por que não trabalhar com a experiência acumulada daquilo que funcionou bem ao longo desse meio século e completar com as obras que faltam em Porto Alegre e na região metropolitana? Por que não trabalhar com a Universidade pública e seu reconhecido internacionalmente Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH)? Por que a Prefeitura não reorganiza o DEP ou o capacita de estrutura, pessoal e recursos para cumprir sua função dentro do DMAE? Afinal esse órgão não deveria ter tanto recurso aplicado financeiramente quando ainda não universalizou completamente o tratamento de esgotos na capital e ainda temos bairros com falta de água tratada.
Se nada disso for feito, nos resta a possibilidade de tornar real as proféticas palavras do prefeito Sebastião Melo ao criticar seu antecessor em 2020 por não fazer as obras: “Quando o prefeito não faz as mudanças que a cidade precisa, a gente muda o prefeito”.
*Raul Pont é professor e ex-prefeito de Porto Alegre.
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