Osvalinda Maria Marcelino Alves Pereira lutou pela agricultura familiar e pela preservação da floresta em uma região dominada por madeireiros ilegais, que desmatam áreas protegidas


Por Daniel Camargos | Edição Paula Bianchi e Carlos Juliano Barros
Beatriz Souza
reporterbrasil.org.br
8–11 minutos


DE TRAIRÃO (PA) –
Osvalinda Maria Marcelino Alves Pereira morreu em 12 de abril, aos 55 anos, com problemas cardíacos, agravados por uma vida enfrentando ameaças de morte. Ela vivia no Projeto de Assentamento (PA) Areia II, em Trairão, no sudoeste do Pará. Defendia a agricultura familiar e a preservação da floresta em uma região dominada por madeireiros ilegais, que desmatam áreas protegidas como a Floresta Nacional do Trairão, a Reserva Extrativista Riozinho do Anfrísio e o Parque Nacional do Jamanxim.   

Em uma manhã de domingo, quando foi colher maracujá, deparou-se com duas covas em seu terreno, cada uma marcada com uma cruz – uma para ela e outra para o marido. Via com frequência homens encapuzados rondando sua casa e escutava recados sobre pistoleiros encomendados para matá-la. 

Mesmo com as ameaças, o sítio no assentamento era uma vitória em busca de um pedaço de terra, após anos de luta contra invasores de terras e políticos poderosos. 

Na década de 1990, Osvalinda recebeu um lote no Projeto de Assentamento Tapurah/Itanhangá, no norte de Mato Grosso, mas teve a casa e a plantação incendiadas, o que obrigou a família a deixar o local. Odair Geller, irmão do ex-secretário especial de Política Agrícola do governo Lula, Neri Geller, é apontado como responsável pela expulsão do casal, de acordo com o Ministério Público Federal. 

Em ação movida na Justiça Federal em 2023, o MPF solicita a devolução do lote ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), além do pagamento de R$ 217 mil para recuperação ambiental. 

O advogado de Odair Geller, Abel Sguarezi, disse que seu cliente nunca teve propriedade ou posse no assentamento. O advogado argumenta que, durante a defesa, mostrou a escritura do terreno no nome de outra pessoa e disse que “será demonstrado de forma pormenorizada a improcedência da ação”.  

Na ação, contudo, o MPF afirma que o terreno estava em nome de um funcionário de Geller.

Os fazendeiros que tomaram as terras dos assentados do Tapurah/Itanhangá, em Mato Grosso, tiveram o apoio do ex-secretário de política fundiária de Jair Bolsonaro, Luiz Antonio Nabhan Garcia, na tentativa de manter a posse ilegal dos lotes, como mostrou a segunda reportagem da série “Ogronegócio: milícia e golpismo na Amazônia”.

Além de se reunir com os fazendeiros e prometer uma solução para os invasores, Garcia também recebeu o prefeito de Trairão, Valdinei José Ferreira (PL), apontado por Osvalinda como um dos madeireiros ilegais do município. “Nossos inimigos são fazendeiros, madeireiros, grileiros, a polícia, vereadores e o prefeito”, resumia Osvalinda.

Django, como o político é conhecido, acumula milhões em multas por infrações ambientais principalmente ligadas  à exploração ilegal de madeira, conforme registros públicos do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama). 

Prefeito de Trairão, Django acumula milhões em multas por infrações ambientais principalmente ligadas à exploração ilegal de madeira (Foto: Reprodução/Redes sociais)
Prefeito de Trairão, Django acumula milhões em multas por infrações ambientais principalmente ligadas à exploração ilegal de madeira (Foto: Reprodução/Redes sociais)

Uma das infrações inclui a extração de madeira próxima ao Projeto de Assentamento Areia II. As ameaças a Osvalinda se intensificaram justamente quando ela denunciou o trânsito de caminhões carregados de toras nas estradas do assentamento para os órgãos de fiscalização ambiental

Duas semanas depois de ser condenado por operar uma serraria sem licença em Trairão, Django foi recebido no gabinete de Nabhan Garcia, no Ministério da Agricultura, em 2020. Estava acompanhado da secretária de Meio Ambiente de seu município e de uma assessora.

A reportagem tentou falar com Django nos contatos indicados no site da prefeitura de Trairão, mas não teve retorno. Nabhan Garcia também não respondeu às perguntas.

Vida de fugas

Enquanto Garcia recebia Django, Osvalinda e o marido, Daniel, vagavam de cidade em cidade. Por causa das ameaças crescentes durante o governo de Jair Bolsonaro (PL), o casal foi obrigado a sair do assentamento onde vivia. A medida foi tomada pelo programa de Proteção a Defensores de Direitos Humanos do governo federal, do qual faziam parte. 

Ficaram assim por um ano e seis meses. Quando retornaram para casa, conseguiram que uma patrulha da Polícia Militar passasse diariamente no sítio deles. Ao lado da casa, uma outra estava em construção. Seria um espaço para que os policiais pudessem ficar hospedados nos momentos em que as ameaças se intensificassem.

Em outubro de 2023, a equipe da Repórter Brasil foi até a casa de Osvalinda, mas ela estava fora do sítio tratando da saúde, em Belém. Voltou para a casa depois, ficou poucos dias e foi internada novamente, morrendo em abril deste ano.

Fabiana, filha de Osvalinda, quer continuar o trabalho da mãe na associação de mulheres do assentamento (Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil)
Fabiana, filha de Osvalinda, quer continuar o trabalho da mãe na associação de mulheres do assentamento (Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil)

A filha e a neta, Fabiana e Dawilly Pereira, mostraram com orgulho as frutas cultivadas: açaí, cajá, araçá, acerola, graviola, banana, pitaya, rambutão, laranja, pequi, manga e jaca. Cuidavam de tudo, esperando o seu retorno.

Entre os vários planos de Osvalinda estava o plantio de árvores frutíferas. Ela queria que os assentados plantassem e coletassem os frutos presentes na floresta. O objetivo era comercializar a produção das polpas, para produção de sucos e doces, conciliando a preservação com a atividade econômica.

A coragem de enfrentar sojeiros e madeireiros rendeu reconhecimento a Osvalinda. Ela foi a primeira brasileira a receber o prêmio Edelstam, em 2020, na Suécia. A bravura, contudo, também custou caro à sua saúde.

“Quem vive sob constante ameaça e não tem resposta dos órgãos que deveriam olhar para o conflito fica adoecido”, diz Claudelice Santos, do Instituto Zé Cláudio e Maria. A organização, sediada em Marabá, dá apoio a defensores da floresta e foi criada em homenagem a outro casal de defensores dos direitos humanos vítima da violência na Amazônia.

Desde que saíram do interior do Paraná, onde nasceram, e foram para o Mato Grosso e depois para o Pará, Osvalinda e o marido sonharam com um pedaço de terra. No PA Areia II, eles se juntaram a 280 famílias com a proposta de produzirem de forma sustentável. Osvalinda criou e presidiu a Associação de Mulheres.

O assentamento, contudo, está posicionado em uma rota estratégica para os madeireiros ilegais. É a porta de entrada para grandes áreas protegidas: a Flona do Trairão, a Reserva Extrativista Riozinho do Anfrísio e o Parque Nacional do Jamanxim. As ameaças àqueles que não concordam com a devastação da floresta são constantes. Em 2011, o agricultor João Chupel Primo foi morto dois dias depois de denunciar a extração ilegal para o MPF.


“Isso tudo aqui vai virar campo de soja”, diz Antônio Silva, que não acredita na resistência da agricultura familiar diante da força do agronegócio (Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil)
“Isso tudo aqui vai virar campo de soja”, diz Antônio Silva, que não acredita na resistência da agricultura familiar diante da força do agronegócio (Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil)

Um dos aliados de Osvalinda foi Antônio Silva, de 73 anos. Por defender a agricultura familiar e ser contra a extração ilegal de madeira, Silva também é ameaçado. “Fiquei desterrado. Dois anos morando fora porque era perseguido por madeireiro”, conta.

Silva narra as ameaças enquanto mostra as árvores frutíferas plantadas por suas mãos. Em certo momento, ele aponta para a frente: “Por isso que o senhor está vendo esse muro. Fiz para me proteger mais”. A casa de Silva chama a atenção na vila do PA Areia II por causa do muro, entre tantas moradias sem cercas. 

Maranhense, ele morou em várias cidades do Pará, trabalhou como garimpeiro e funcionário de fazendas e de uma serraria até conseguir o lote no assentamento. Plantou em cada palmo do chão, fez represa para peixes, chiqueiro, galinheiro, mas não tem esperança de que a agricultura familiar vença:  “Isso tudo aqui vai virar campo de soja. O mundo anda e desanda rápido demais”. 

Esta reportagem teve apoio da Rainforest Investigations Network, do Pulitzer Center. Saiba mais.



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