Como ultradireita e Centrão uniram-se em Brasília, para ensaiar a grande aliança conservadora em 2026. Por que o arranjo vitimou os povos indígenas e favoreceu os golpistas. De que forma ele abre a disputa eleitoral – e quais os meios de reagir

O presidente da Câmara dos Deputados, Hugo Motta (Republicanos-PB), cometeu uma dupla falsidade na madrugada desta quarta-feira (10/12), logo após aquela casa legislativa aprovar o chamado “PL da Dosimetria”. A medida permite a redução de pena àqueles que foram condenados pelos crimes de tentativa de abolir o Estado Democrático de Direito e golpe de Estado. Segundo Motta, possibilitava “que os que tiveram menor importância no acontecido possam voltar às suas casas, ter as penas reduzidas e o Brasil possa, sem esquecer, virar essa página triste da democracia”, referindo-se aos atos golpistas de 8 de janeiro de 2023.
A primeira violação da verdade está no fato de os condenados do 8 de janeiro, que hoje não chegam a 200 pessoas cumprindo pena em regime fechado, nunca terem sido o verdadeiro objeto de qualquer proposta de anistia ou redução de pena. A ideia sempre foi beneficiar o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e seu entorno mais próximo, envolvidos em uma trama golpista. Mas a argumentação de Motta é falsa também por sugerir que o Brasil pode virar uma página na qual ele está preso desde sua concepção como país.
Afinal, o que significa um tradicional “arranjo por cima” garantindo a poucos privilegiados que o dito rigor da lei não recaia sobre eles? O privilégio agora oferecido aos golpistas contrasta inclusive com a dinâmica adotada pelo Legislativo há tempos, de somente aumentar penas para quase toda espécie de crime, dos quase insignificantes aos mais graves, incluindo a criação de tipos penais a cada oportunidade midiática. A mesma Câmara, subitamente, se descobre “humanizada” em relação a quem tentou ferir o sempre frágil e incompleto arranjo democrático brasileiro.
Agora, o avanço representado pela inédita punição a golpistas se enfraquece a olho nu. Endossa-se a narrativa (corroborada por parte da mídia tradicional) de que teria havido “exageros” na aplicação da lei penal. Diante da sanha punitivista usual dos legisladores, o golpe virou delito menor, em uma mensagem de que este crime compensa, assim como a chantagem a que foi submetida parte da Câmara.
Centrão coagido. E cúmplice
A chantagem, neste caso, tinha o Centrão como destinatário. Veio sob a forma da candidatura do senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) à Presidência da República. O anúncio, feito na sexta-feira (5/12), abalou os humores do mercado financeiro e colocou o Centrão na parede, como dito aqui. Era uma forma de amarrar os partidos que articulam a candidatura do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), ao Planalto ao bolsonarismo e seu pacote de demandas. Nele está não somente o compromisso com um eventual indulto ao “capitão”, em caso de vitória nas eleições presidenciais, mas com a própria anistia. A redução de pena, na medida do que foi possível politicamente a esta altura, é uma espécie de sinal – um pagamento prévio feito pelo Centrão pra iniciar a negociata.
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Foi na surdina — como tem sido hábito na Casa desde Eduardo Cunha — queHugo Motta pautou a votação do PL da Dosimetria. A ideia é não dar tempo à reação popular, nas redes sociais ou nas ruas. Ao mesmo tempo, o presidente da Câmara pautou o pedido de cassação do deputado Glauber Braga (PSOL-RJ). Estava ciente de que isso dispersaria os esforços da esquerda em uma dupla batalha, que envolveria também a defesa do mandato do parlamentar. Fez isso ao mesmo tempo em que propunha a votação da cassação de Carla Zambelli (PL-SP), personagem já rifada informalmente pelo bolsonarismo, em um exercício de falsa simetria que projetava um equilíbrio entre partes que nunca existiu, como ficou evidente na ação truculenta promovida contra o deputado do PSOL.
Herdeiro da recente tradição da Câmara de se autonomizar em relação a outros poderes, e satisfazer unicamente suas vontades, a despeito do que seria o bem comum, Motta fez valer o interesse do seu grupo político, aliado ao extremismo de direita, que busca agora chegar ao Planalto com um candidato para chamar de seu: Tarcísio de Freitas. Não é mais o Centrão se aliando oportunisticamente a um ou outro governo, mas sim querendo chegar ao governo pela porta da frente. É sempre bom lembrar, aliás, que o presidente da Câmara e o governador paulista pertencem ao mesmo partido, legenda que nasceu como braço político da Igreja Universal do Reino de Deus. Não são poucos os interesses envolvidos na aprovação desse projeto.
O STF à prova
Enquanto alguns porta-vozes da imprensa corporativa passam boa parte de sua trajetória profissional clamando por um suposto “centro democrático” que, se chegou a existir, foi minúsculo, o Centrão real, majoritariamente de direita, desnuda a polarização verdadeira do Brasil. Ela se expressa na forma de um embate entre uma elite econômico-financeira, integrada ao sistema político e resistente a qualquer mínima mudança na estrutura social que ponha em risco seus privilégios, contra quase toda a sociedade.
Não deixa de ser sintomático, por exemplo, que no mesmo dia o Senado tenha aprovado, em segundo turno, por 52 votos a 15, uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que estabelece um “marco temporal” para a demarcação de terras indígenas. Segundo o texto, os povos indígenas só teriam direito a áreas ocupadas ou sob disputa na data da promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988. A matéria vai seguir agora para a Câmara, onde é enorme o risco de que seja aprovada
A votação é entendida como uma resposta ao Supremo, já que estão em julgamento quatro ações que questionam a constitucionalidade do marco temporal para as demarcações. A tese do marco temporal já foi considerada inconstitucional pelo STF, mas voltou a ser apreciada pela Corte após o Congresso Nacional aprovar um projeto sobre o tema em 2023, antes mesmo da publicação do acórdão pelo tribunal. Diversos dispositivos da lei foram vetados pelo presidente Lula, mas o Congresso derrubou os vetos. Desde então, o STF tem promovido audiências de conciliação — o que faz muito pouco sentido. A iniciativa passa a impressão não só de que uma decisão judicial pode ser afrontada pelo Legislativo como também provoca a interpretação de que direitos podem ser negociados. No caso, os direitos das vítimas.
Agora, a Corte terá um novo desafio caso o PL da Dosimetria seja aprovado pelas duas Casas: terá de julgar se a mudança proposta é constitucional ou não. Segundo veículos de imprensa, a maioria dos ministros concordaria com a alteração relativa a quem participou do 8 de Janeiro, mas, sobre aqueles que participaram da elaboração e deram andamento à execução de um golpe fracassado, haveria discordância.
A reação necessária
No Senado, a proposta de redução de penas não irá direto ao plenário, passando primeiro pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), presidida pelo senador governista Otto Alencar (PSD-BA). A relatoria ficou com Espiridião Amin (PP-SC), aliado do bolsonarismo. Mesmo aliados do Planalto acreditam que será difícil barrar a aprovação. Mas a velocidade da tramitação também pode permitir que uma resistência seja organizada fora do âmbito institucional.
Após o projeto ser aprovado, deve ser vetado pelo presidente Lula, até porque, para se viabilizar o cumprimento de pena em regime fechado, houve uma modificação nas regras de progressão de regime para o semiaberto. A Câmara considerou que os crimes de tentativa de golpe e abolição do Estado Democrático, pelos quais Bolsonaro e outros foram condenados, não configuram “violência ou grave ameaça”. Esse benefício passaria a valer também para crimes como incêndio doloso, resistência, atentado contra a segurança no transporte e coação no curso do processo, delito pelo qual o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP) se tornou réu no STF.
A mudança dá uma brecha ao governo inclusive de se contrapor ao discurso do bolsonarismo/Centrão de “preocupação” com a segurança pública. Mas, além de ser um embate feito no território mais afeito a este grupo, não se chega ao principal, que é deter a volúpia da direita no Parlamento.
Mobilização, nas redes e nas ruas, foi essencial para deter a PEC da Bandidagem, por exemplo, e terá de ser feita novamente para que os deputados e senadores arquem com os custos de suas opções e atitudes. Mas é preciso ir além. Parlamentares contam com a descrença de boa parte dos cidadãos e com o desinteresse de outra parcela a despeito de votarem e proporem pautas impopulares. O arranjo que garante sua permanência no centro do poder lhes favorece.
Em vista disso, falar de forma genérica sobre a qualidade do Congresso Nacional não traz incômodo efetivo aos ocupantes do Parlamento. É preciso dar “nome aos bois”. Um acompanhamento mais próximo de seus trabalhos, apontando seu compromisso com interesses antipopulares e buscando repercussão em seus nichos eleitorais, pode fazer com que sejam questionados com temas realmente incômodos pela sua base. O desafio do campo progressista não é trivial, ainda mais em um contexto no qual a eleição presidencial também será disputada de forma acirrada. Mas não pode ser ignorado.
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