Balanço de campo e cidade aponta 'guinada' no Planalto e lista entraves impostos pela direita no Congresso

Manifestação em São Paulo pelo fim da escala 6x1

Em 2025, movimentos populares do campo e da cidade voltaram às ruas e às redes, unificaram pautas e arrancaram vitórias importantes na disputa com um Congresso hostil. O ano marcou, na avaliação dessas organizações, uma saída da defensiva e a retomada de capacidade de iniciativa, com impacto direto na agenda nacional e na correlação de forças.

É a partir dessa leitura que o Brasil de Fato ouviu oito lideranças e lutadores populares para fazer um balanço do ano. A reportagem reúne as avaliações sobre os principais embates do terceiro governo Lula em 2025, as contradições e limites impostos pelo Legislativo e pelas elites econômicas e as projeções de luta que começam a desenhar o cenário de 2026.

Nas entrevistas, uma ideia aparece como síntese do período: a pressão popular ajudou a empurrar o Palácio do Planalto para uma postura mais altiva e combativa na defesa da soberania e no enfrentamento aos interesses do andar de cima. Essa mudança é localizada sobretudo no segundo semestre, quando a disputa com o Congresso se intensificou e a mobilização social ganhou escala, em uma conjuntura que, segundo as fontes, também foi marcada por tensões internacionais e pela reorganização da extrema direita.

A reorganização do campo popular teve como eixo uma aposta de unidade: o Plebiscito Popular, realizado nacionalmente a partir de 1º de julho. A consulta reuniu três perguntas, sobre taxação dos super-ricos, isenção do Imposto de Renda para quem ganha até R$ 5.000 e fim da escala 6×1. Na reta final, o processo ampliou o prazo até 12 de outubro, com mutirões de votação, e, em quatro de novembro, o resultado foi entregue ao presidente do Senado, com a marca de “mais de dois milhões” de votos.

A iniciativa, avaliam entrevistados, ajudou a dar forma a uma agenda classista capaz de dialogar com o cotidiano e reabrir a disputa política. “A principal vitória foi a gente ter demonstrado capacidade de iniciativa política das organizações em unidade”, disse Camila Morais, do Levante Popular da Juventude. Na mesma direção, Ana Priscila, da Marcha Mundial das Mulheres (MMM), afirmou que 2025 foi o ano em que o campo popular conseguiu avançar do esforço de “leitura” para a “ação” coletiva. “A gente viu que a pauta da escala 6×1 tava ganhando muita força nas ruas”, avaliou, ao defender que vitórias só viriam com pressão popular, e não apenas por negociação institucional.

Ao longo da reportagem, as avaliações também destacam que o enfrentamento ao Congresso se tornou um eixo incontornável. “As ambições mais genuínas de um progressismo estão bloqueadas pelas ambições nada republicanas do centrão”, analisou Charles Trocate, do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM). Para Ana Carolina Vasconcelos, do Movimento Brasil Popular, o governo passou a apostar mais na politização social em meio aos impasses no Legislativo. Gilmar Mauro, do MST, sintetizou a lição do período ao afirmar que “não dá mais para governar à frio”.

Manifestações em setembro mobilizaram centenas de milhares de pessoas em diversas cidades do país e do exterior contra a PEC da Blindagem. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Manifestações em setembro mobilizaram centenas de milhares de pessoas em diversas cidades do país e do exterior contra a PEC da Blindagem. | Crédito: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Rearticulação e unidade após a pandemia: como a rua voltou a “puxar” a política

Parte do balanço de 2025 começa antes de 2025. Para as lideranças ouvidas, a reorganização do campo popular foi atravessada pelo refluxo e pela fragmentação que vieram com a pandemia, e o ano que agora termina seria, em alguma medida, a virada de uma etapa de recomposição para outra de ação coletiva.

“Foi muito duro isso para a organização dos movimentos”, resumiu Ana Priscila, da Marcha Mundial das Mulheres (MMM), ao explicar que 2024 teria sido, para muitas organizações, um período dedicado a construir “uma análise comum”, enquanto 2025 foi o momento de “avançar nesse processo de ação”. A leitura aparece também em outras entrevistas, quando se fala de retomada de capacidade de iniciativa e de disputa pública, não só por dentro das institucionalidades.

A partir dessa rearticulação, os movimentos voltaram às ruas em uma ofensiva com unidade rara. A campanha pelo Plebiscito Popular, convocado pelas frentes Brasil Popular e Povo Sem Medo, funcionou como símbolo desse processo. Mais do que a consulta em si, o plebiscito serviu como instrumento de mobilização de massa, com alcance territorial amplo e foco em pautas diretamente ligadas à vida da população: o fim da escala 6×1, a isenção do Imposto de Renda para quem ganha até R$ 5 mil e a taxação dos super-ricos.

Camila Morais, do Levante Popular da Juventude, vê na iniciativa uma demonstração de força e método. “Ele demonstrou nossa capacidade de fazer unidade com capilaridade e presença nos territórios”, afirmou. A dirigente enfatizou que a aposta em linguagem direta e material de base ajudou a disputar ideias nas ruas, nas escolas, nas redes sociais e nos locais de trabalho.

A dirigente da MMM reforçou que a escolha dos temas não foi casual. “A gente passou um tempo tentando analisar qual seria essa pauta que nos unificaria”, disse Ana Priscila. “A gente viu que a pauta da escala 6×1 estava ganhando muita força nas ruas”, completou. Ela considera que o plebiscito foi também pedagógico: “Fez o povo debater desigualdade e injustiça fiscal com base na própria vida”.

Para Charles Trocate, do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM), o que marcou o ano foi a capacidade de popularizar temas técnicos com vocabulário cotidiano. “A população, pela primeira vez, começou a compreender o que é justiça fiscal”, afirmou. “Começamos a trabalhar de uma maneira popular, pública, com capilaridade, com presença.”

Gilmar Mauro, do MST, avaliou que 2025 consolidou a retomada da ofensiva popular. “O que marca o ano é o retorno da luta como força real no cenário político nacional”, disse. Para ele, o ciclo do plebiscito teve valor simbólico e político. “De alguma forma, a esquerda e os movimentos populares conseguiram furar a bolha do neoliberalismo”, completou.

Essa ofensiva também expôs contradições no campo institucional. Se, de um lado, o governo Lula passou a incorporar temas da agenda popular, como a isenção do imposto de renda para pessoas com salários de até R$ 5 mil, aprovada e sancionada em novembro, de outro, o Congresso Nacional virou alvo recorrente das críticas vindas das ruas. A avaliação é de que o Legislativo operou, durante boa parte do ano, como centro de resistência a propostas de interesse público.

Um ponto de virada importante foi a disputa sobre o IOF. Em 25 de junho, deputados e senadores derrubaram o decreto presidencial que reajustava o imposto, em uma votação considerada surpresa. A leitura dos movimentos é de que esse gesto abriu uma nova fase na política. “Ali o governo percebeu que não ia conseguir mais governar no estilo Janja paz e amor, botando quadro na parede”, disse Trocate, com ironia. “O Congresso virou oficialmente o bunker da direita e da extrema direita. É o inimigo do povo.”

A partir daí, o enfrentamento se intensificou. A chamada “PEC da Impunidade” (PEC 3/2021), o “PL da Dosimetria” (2162/2023) e o “PL da Anistia” (2858/2022) foram identificados pelos movimentos como símbolos da tentativa de blindar golpistas e aprofundar desigualdades. Em comum, esses projetos ampliaram a sensação de que o Legislativo atua contra os interesses da maioria.

“A direita não tem vergonha de defender os seus”, disse Ana Priscila. “Não tem tido vergonha de mostrar que são inimigos do povo.” A dirigente alertou também para a concentração orçamentária no Congresso, o que, segundo ela, impõe travas à execução de políticas públicas de interesse social. “Isso tudo piora quando a gente visualiza que esses nossos inimigos detêm a maior parte do orçamento.”

Na leitura de Ana Carolina Vasconcelos, do Movimento Brasil Popular, o governo passou a compreender que a correlação de forças no Congresso, sozinha, não garantiria avanços. “A partir do momento em que a gente passa a ter o governo federal também como um ator que se propõe a mobilizar a sociedade, a gente consegue abrir uma janela histórica”, disse. Ela chama esse momento de transição para uma “governança quente”.

Na avaliação das lideranças, a rua voltou a puxar a política. O ano teve mobilizações nacionais marcantes, como os atos de 16 de fevereiro, 1º de maio e 10 de julho, com a escala 6×1 como bandeira presente em todas elas. “Acho que desde o começo do ano a gente tem sentido uma melhora nas ruas”, disse Ana Paula Perles, do MTST. Para ela, isso expressa uma rearticulação popular diante do esgotamento de vias institucionais. “A população volta a se reorganizar para disputar espaço público”, disse.

No balanço final, o que os movimentos reivindicam como saldo do ano não é apenas uma lista de vitórias pontuais, mas uma mudança de clima. “Há muito tempo a gente já dizia que essa vitória viria se a gente conseguisse botar pressão nas ruas”, disse Ana Priscila. “Foi o que fizemos.”

Iniciativa tem como objetivo ouvir a população sobre o fim da escala 6×1 e sobre a taxação dos super ricos. | Crédito: Foto: Junior Lima
Iniciativa tem como objetivo ouvir a população sobre o fim da escala 6×1 e sobre a taxação dos super ricos. | Crédito: Junior Lima

Soberania, BRICS e pressões externas: a disputa internacional que bate à porta do Brasil

Fora das fronteiras brasileiras, a leitura é a de que a reorganização do campo popular e a disputa com o Congresso se dão em um cenário internacional mais instável, marcado por avanço de forças autoritáriastensões econômicas e uma corrida por recursos naturais estratégicos, com a América Latina no centro do tabuleiro.

Charles Trocate, do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM), afirmou que o mundo vive “um momento de perigo” e avaliou que o autoritarismo voltou a se expandir como método de governo associado ao capitalismo financeirizado. “Cresceu como forma de governo essa expressão ou este comportamento que o capitalismo sempre reivindica como forma de governo, que é se associar à extrema-direita”, disse. Na mesma linha, ele argumentou que a ofensiva vem acompanhada de contrarreformas que retiram direitos e aprofundam a miséria, produzindo subalternidade em escala global. “Onde há hegemonia, o velho Gramsci já nos ensinava, há subalternidade”, afirmou.

Nesse contexto, o Brics aparece na avaliação de diferentes entrevistados como elemento de disputa geopolítica, não como horizonte anticapitalista, mas como bloco capaz de enfrentar, ainda que taticamente, a hegemonia dos Estados Unidos e do dólar. “Está em curso a formação de um bloco político e econômico não para superar o capitalismo, mas para enfrentar taticamente as ambições do imperialismo americano no mundo, que é os Brics”, analisou Trocate, ao indicar que a China ocupa um papel central nesse movimento e que a aposta envolve construir alternativas à moeda estadunidense como referência dos negócios internacionais.

Durante protesto, jovens se fantasiaram de Jair Bolsonaro e Donald Trump | Crédito: Paulo Pinto/Agência Brasil

Ana Priscila, da Marcha Mundial das Mulheres (MMM), também relacionou o momento de crescimento do Brics a uma mudança de postura do governo brasileiro. Na avaliação dela, a conjuntura acabou impondo um comportamento mais “altivo” diante de ataques e pressões externas. “A realidade dos fatos da conjuntura impuseram que o governo tivesse uma postura mais altiva”, disse, ao sustentar que a disputa por soberania não é um tema abstrato, e tem impacto direto sobre a política interna e sobre a correlação de forças do campo popular.

Para Soniamara Maranho, do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), a disputa por soberania na região passa pela corrida global por recursos e pela pressão sobre países latino-americanos. “Nós sabemos que a América Latina é um continente onde detém os territórios e os recursos naturais raros”, afirmou. Na avaliação dela, o cerco à Venezuela é um sinal dessa disputa. “Então os aviões, todas as embarcações, todos os canhões voltados para a Venezuela é sim voltado para a nossa América”, disse.

A dirigente do MAB avaliou ainda que o clima de pressão e hostilidade na vizinhança latino-americana se conecta ao ambiente interno. Para ela, há uma tentativa de produzir instabilidade e abrir caminho para interferências, inclusive em processos eleitorais. “É bom nós ficar atentos a isso que está passando na Venezuela, ao processo da tentativa de entrada de forças violentas para chegar na nossa América, para chegar no Brasil”, afirmou, ao ligar o tema às ameaças do fascismo e do imperialismo.

Ana Carolina Vasconcelos, do Movimento Brasil Popular, situou a mesma preocupação em uma chave de disputa de opinião pública e de soberania. Segundo ela, a extrema direita brasileira tem alianças e estímulos que ultrapassam a política doméstica. “A extrema direita tem como um aliado fundamental o próprio imperialismo estadunidense”, avaliou, ao mencionar tensões na região e apontar que a soberania brasileira também estaria sob ameaça quando há pressão externa sobre governos latino-americanos.

O cenário internacional não apaga o problema central do tabuleiro interno. Ao contrário, ele ajuda a explicar por que a disputa por soberania ganha peso em momentos de bloqueio institucional e de ofensiva conservadora. Trocate afirmou que a luta política no Brasil segue “em desempate”, com vantagem da elite na correlação social. “A elite tem mais poder na correlação de força social do que o próprio governo”, avaliou, ao defender que o objetivo do próximo período seria ao menos produzir “um empate institucional”.

Representantes de Rússia, Irã, Brasil e Nigéria no encontro do Rio de Janeiro
Representantes de Rússia, Irã, Brasil e Nigéria em encontro do Brics, no Rio de Janeiro (RJ) | Crédito: Rodrigo Durão Coelho

Congresso como travamento: orçamento, emendas e a ofensiva conservadora

A leitura de que 2025 foi marcado por uma “guinada” no Planalto não aparece como sinal de estabilidade institucional. Ao contrário, é apresentada como reação a um cenário em que o Congresso segue operando como principal foco de bloqueio às pautas populares, com maioria conservadora e capacidade de impor derrotas, travar iniciativas e capturar o debate público.

Charles Trocate descreveu o momento como o esgotamento de um arranjo que já não se sustenta nos mesmos termos de outros governos. “Nós estamos vivendo o esgotamento do presidencialismo de coalizão”, avaliou, ao comparar os dois primeiros mandatos de Lula com o atual e apontar o fortalecimento do centrão após a Operação Lava Jato. Para ele, “as ambições mais genuínas de um progressismo” acabam bloqueadas “pelas ambições nada republicanas do centrão”.

Na mesma direção, Ana Carolina Vasconcelos, do Movimento Brasil Popular, disse ver uma transição em que o Legislativo ganha cada vez mais peso sobre o Executivo. “Vem se consolidando cada vez mais no Brasil uma transição para algo como se fosse um semipresidencialismo”, afirmou, ao avaliar que o governo federal tem “cada vez menos poder”, enquanto o Congresso, controlado pelas elites, se torna “cada vez mais determinante”. Na fala dela, o aperto fiscal também aparece como parte desse travamento, reduzindo margens para reformas de base e empurrando o governo para uma política de contenção.

Ana Priscila, da Marcha Mundial das Mulheres (MMM), tratou o tema a partir de um ponto sensível para a disputa popular: o orçamento. “Isso tudo piora quando a gente visualiza que esses nossos inimigos detêm a maior parte do nosso orçamento”, disse, ao afirmar que o domínio sobre a verba pública limita a capacidade de implementar políticas e de apresentar “vitórias concretas”. Para ela, o cenário exige renovar quadros e recompor força social para enfrentar um Congresso que “não tem tido vergonha de mostrar” seus posicionamentos.

Ana Paula Perles, do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), associou essa correlação de forças ao cotidiano da disputa política. “O pior congresso eleito”, disse, ao avaliar que o Legislativo tem usado manobras para garantir benefícios próprios, e que a reorganização das ruas volta a aparecer como resposta possível ao bloqueio institucional. Já Soniamara Maranho, do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), descreveu um ambiente em que pautas que poderiam favorecer a classe trabalhadora caminham “na surdina”, e disse perceber um bloco conservador atuando para impedir medidas de distribuição de riqueza e controle popular.

Golpismo julgado, mas não derrotado: movimentos celebram prisões e cobram vigilância

Outro eixo do balanço de 2025 feito pelos movimentos é o que envolve a responsabilização de autoridades envolvidas nos atos golpistas de 8 de janeiro. A condenação e prisão preventiva de Jair Bolsonaro (PL), em novembro, e as condenações de generais e aliados do ex-presidente foram celebradas como uma vitória inédita, tanto no plano simbólico quanto institucional. Para os movimentos, o Brasil começou a enfrentar, pela primeira vez, a impunidade de seus golpistas.

“É algo que a gente não teve na nossa história”, lembrou Ana Priscila. “Vivemos uma ditadura militar e saímos dela sem conseguir prender os torturadores. Agora a gente lavou a alma de todas as vítimas do governo genocida da pandemia.”

O Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu em setembro a condenação de Bolsonaro a 27 anos de prisão. No mês seguinte, generais como Braga Netto, Augusto Heleno, Paulo Sérgio Nogueira e Almir Garnier também foram condenados por sua participação na trama golpista.

Na visão de Charles Trocate, as decisões judiciais só ocorreram porque houve pressão social. “Não foi uma vitória do Estado de Direito espontâneo, mas da organização popular que impôs ao Estado a necessidade de reagir”, analisou. Segundo ele, o processo reforça a necessidade de manter o enfrentamento ideológico contra o bolsonarismo. “O bolsonarismo não está morto. Parte dele está no Congresso, parte está nos quartéis, e parte está na cabeça de muita gente.”

ato em são paulo protesta contra a possibilidade de anistia
Manifestante segura cartaz contra anistia a golpistas durante ato na Avenida Paulista, em São Paulo (SP) | Crédito: Elineudo Meira/@fotografia.75

Feminismo popular, COP30 e reforma agrária: corpo, território e cuidado em disputa

Além das pautas de trabalho e tributação, o balanço de 2025 feito pelos movimentos ouvidos pelo Brasil de Fato passou pelo feminismo popular e a luta pelo cuidado, a disputa em torno da COP30 e da transição energética, e o lugar da reforma agrária e dos territórios quilombolas em um país que segue concentrando terra e poder.

Do ponto de vista do feminismo popular, Ana Priscila, da Marcha Mundial das Mulheres (MMM), avalia que o ano marcou um acúmulo importante. Ela destaca como vitória histórica a aprovação da Política Nacional de Cuidados, que começa a pautar a necessidade de o Estado compartilhar o trabalho doméstico e de cuidados, hoje concentrado sobre as mulheres. A dirigente critica a lógica “familista” da direita, que usa a defesa abstrata da família para manter mulheres em uma realidade de trabalho gratuito e sem direitos. “Para a gente, essa lógica familista não resolve a vida das mulheres”, resumiu, ao lembrar que mais tempo em casa, sem política pública, costuma significar apenas mais sobrecarga.

Na rua, esse debate apareceu com força em 2025. Ana Priscila citou a grande Marcha das Mulheres Negras em novembro como momento simbólico dessa disputa. “Foi algo bem importante, relevante na disputa dessa coisa do bem viver”, avaliou. Para ela, o enfrentamento às violências e ao racismo precisa estar articulado à crítica a um modelo de sociedade que naturaliza o trabalho não pago das mulheres. “Ter mais tempo para a família, para as mulheres, não significa menos trabalho. Significa mais trabalho”, apontou.

Manifestação Mulheres Vivas, na avenida Paulista, em São Paulo (SP), neste domingo (7) | Crédito: Elineudo Meira @fotografia.75
Manifestação Mulheres Vivas, em dezembro, na avenida Paulista, em São Paulo (SP) | Crédito: Elineudo Meira/@fotografia.75

A mesma dirigente vincula essa agenda ao debate internacional sobre clima e soberania. Ela destacou a realização da Cúpula dos Povos, em Belém, que reuniu cerca de 30 mil pessoas em paralelo à COP30, como contraponto às “falsas soluções” apresentadas em espaços oficiais. Ali, movimentos populares, indígenas, quilombolas e ambientalistas denunciaram o imperialismo e os bloqueios econômicos contra países como Cuba e Venezuela, e defenderam uma transição ecológica que não sacrifique povos e territórios em nome do lucro.

Soniamara Maranho, do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), reforça essa leitura. Para ela, a crise climática tem classe, cor e gênero. “São mulheres, são os negros, são as nossas comunidades” que sentem de forma mais dura os efeitos de enchentes, secas, rompimentos de barragens e obras de infraestrutura. Ao mesmo tempo, ela denuncia que o sistema capitalista tenta transformar a própria crise em mercadoria. “A crise climática também passa a ser um negócio quando fica na mão do sistema capitalista”, avaliou. A dirigente defende uma transição energética justa, com participação popular, e critica fórmulas que mantêm empresas e governos decidindo sozinhos. “Tem que ter processos organizativos onde a natureza, o ser humano, não seja uma mercadoria”, afirmou.

Essa crítica ganha contornos ainda mais concretos quando se olha para os territórios quilombolas. Mateus Brito, da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), lembra que essas comunidades estão entre as que mais preservam vegetação nativa no país. “Só perderam em 40 anos 5% da sua vegetação nativa”, disse. “Preservaram mais do que territórios indígenas, inclusive, e muito mais do que áreas privadas, que perderam 17% nesse mesmo período.” Ainda assim, o Estado brasileiro segue atrasado na titulação: se mantiver o ritmo atual, calculou Mateus, serão necessários cerca de 2.700 anos para regularizar todos os quilombos. “Isso chega a ser vergonhoso, é criminoso, é uma política de violência contra os territórios quilombolas”, denunciou.

Ao mesmo tempo, quilombolas têm sido alvo preferencial de projetos apresentados como “energia limpa”, como grandes complexos eólicos, que continuam avançando no Brasil. “Invade os territórios para poder instalar megaprojetos”, relatou Mateus. Ele mencionou a chamada síndrome da turbina eólica, associada a ansiedade, depressão, insônia e casos de suicídio em comunidades cercadas por torres. “Você imagina 24 horas por dia aquele barulho no ouvido. Isso mexe com todo o ecossistema”, descreveu. O dirigente chama isso de racismo ambiental e avalia que o discurso de desenvolvimento verde tem servido para justificar novas formas de expulsão e adoecimento de populações tradicionais.

A denúncia de abandono institucional também aparece com força na fala da Conaq. Mateus compara a estrutura destinada a povos indígenas, que contam com órgãos como a Funai e uma secretaria específica de saúde, com a ausência de políticas equivalentes para quilombolas. “No caso da população quilombola, a gente não tem nada nem semelhante a isso”, afirmou. Segundo ele, o que existe hoje são “penduricalhos e armengues” que não dão conta da dimensão da demanda. “O que a gente quer é uma política institucional séria com relação à garantia dos direitos quilombolas. E isso precisa de recurso, precisa de estrutura.”

No campo mais amplo da terra, Gilmar Mauro, do MST, fez um balanço duro da reforma agrária no período recente. “O tema reforma agrária é um desastre”, afirmou, ao apontar que praticamente não houve desapropriações e que os assentamentos foram ínfimos nos últimos três anos. Ele relatou ainda que áreas aguardam decisão da Casa Civil para serem desapropriadas, mas seguem paralisadas. Para o dirigente, a reforma agrária “não esteve na ordem do dia”, o que ele considera um problema central para qualquer projeto de desenvolvimento com soberania.

A crise agrária se conecta à discussão sobre alimentação e saúde pública. Gilmar destacou o decréscimo de investimentos na agricultura familiar e no Pronaf, especialmente para a produção de alimentos como arroz, feijão, trigo e mandioca. “Houve um avanço muito significativo por um consumo dos ultraprocessados, principalmente pelas classes trabalhadoras mais pobres”, alertou, relacionando o fenômeno ao aumento de doenças como obesidade e diabetes. O dirigente também criticou a liberação recorde de agrotóxicos. “É grave”, disse, ao lembrar que o volume de liberações superou o registrado no governo Bolsonaro.

Apesar do diagnóstico duro, ele apontou uma vitória no campo da educação: a retomada e o fortalecimento de iniciativas de educação do campo, com a abertura de cursos de medicina voltados às populações rurais, em articulação com programas como o Pronera. Gilmar defende que essa política aproxima “o campo e o campus” e ajuda a formar profissionais comprometidos com a realidade camponesa, rompendo com a lógica de que a formação universitária está desligada dos territórios.

Cerca de mil camponeses ligados ao MST ocuparam a sede do Incra no Recife, em julho | Crédito: Anderson Stevens / MST

Sem recuo ideológico: movimentos projetam disputas estratégicas para 2026

As análises feitas pelos movimentos populares ao longo de 2025 não se limitam ao balanço do que passou. Entre conquistas e impasses, o diagnóstico é de que o próximo ano exigirá ainda mais capacidade de organização, enfrentamento e unidade, tanto nas ruas quanto nas instituições. O objetivo principal: derrotar a direita e eleger Lula para um novo mandato.

Ana Priscila, da Marcha Mundial das Mulheres, é enfática: “Se a gente não fala sobre essas agendas, a direita vai falar. A omissão entrega o monopólio da narrativa”. Para ela, não cabe à esquerda esconder temas como aborto ou a defesa da Venezuela para agradar setores conservadores. “A disputa tem sido pelas ideias – de nós e deles. E tem avançado quem não tem medo de defender suas bandeiras.”

O tom também é de alerta quanto à composição do Congresso, considerado pelas fontes como um dos principais obstáculos à implementação de mudanças estruturais no país. “O Congresso é inimigo do povo”, afirmou Ana Priscila, ao comentar a dificuldade de avançar políticas públicas enquanto o orçamento segue sequestrado por emendas e lobbies empresariais. A mesma avaliação é feita por Gilmar Mauro, do MST: “Não tem nenhum equilíbrio ali. Há uma força reacionária que vota contra o povo sistematicamente.”

Por isso, os entrevistados reforçam que a disputa institucional deve estar acompanhada de uma ofensiva política popular. Trocate defende que 2026 precisa ser um ano de renovação de quadros, com a presença crescente de lideranças oriundas dos movimentos populares, especialmente jovens, negros e mulheres. “Não basta mudar nomes, é preciso mudar a origem social e política de quem ocupa esses espaços.”

A prioridade, para todos, é manter a mobilização e a pressão social como método. “A gente precisa ir para a rua com disciplina, com vontade política, com unidade e sem medo”, disse Ana Priscila. “Sem medo de ser feliz, sem medo de defender soberania e sem medo de dizer quem nós somos.”

 Publicado originalmente por: Brasil de Fato


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