Viomundo

Mentiras Nobres e Guerra Perpétua: Leo Strauss, os Neocons e o Iraque

As ideias do filósofo político conservador Leo Strauss estão influenciando a visão de mundo do governo Bush? Danny Postel entrevista Shadia Drury — uma acadêmica crítica de Strauss — e pergunta a ela sobre a conexão entre os diálogos de Platão, o segredo e as mentiras e a guerra liderada pelos Estados Unidos contra o Iraque.

por Danny Postel

18/10/2003, no Information Clearing House

O que foi inicialmente um argumento contra a guerra agora faz parte do conhecimento público. É reconhecido amplamente que o governo Bush não foi honesto sobre as razões que deu para invadir o Iraque. Paul Wolfowitz, o influente subsecretário de Defesa dos Estados Unidos, reconhece que as provas oferecidas para justificar a guerra eram “obscuras” e agora diz que as armas de destruição em massa não eram uma questão crucial (vejam o livro de Sheldon Rampton e John Stauber, Armas de Enganação em Massa: os usos da propaganda na guerra de Bush contra o Iraque, 2003).

De outra parte, Shadia Drury, professora de teoria política na Universidade de Regina em Saskatchewan, argumenta que o uso da enganação e da manipulação na atual política dos Estados Unidos deriva diretamente das doutrinas do filósofo político Leo Strauss (1899-1973). Seus discípulos incluem Paul Wolfowitz e outros neoconservadores que dirigiram boa parte da agenda do governo Bush.

Se Shadia Drury está certa, então os formuladores da política norte-americana exercem a enganação com maior coerência que seus aliados britânicos na 10 Downing Street de Tony Blair. No Reino Unido, uma investigação pública está em andamento sobre a morte do especialista em armas biológicas David Kelly. Um tema central é se o governo enganou o público, como sugeriu um repórter da BBC.

A investigação documentou pelo menos algumas formas usadas pela equipe do primeiro-ministro para inflar a apresentação de inteligência sobre a ameaça iraquiana. Mas poucos duvidam que em termos de sua filosofia, se tem uma, os integrantes da equipe de Blair acreditavam que precisavam parecer honestos. Se houve enganação por parte deles é uma questão de apresentação ou de ’spin’: tentativas de projetar honestidade sob o cerco de uma mídia desonesta.

A profunda influência das ideias de Leo Strauss nos atuais arquitetos da política externa dos Estados Unidos já foi citada, esporadicamente, na mídia (daí a gozação sobre a influência dos Leo-cons). Christopher Hitchens, um ardente defensor da guerra, escreveu sem pejo em novembro de 2002 (num artigo intitulado Maquiavel na Mesopotâmia) que:

“Parte do charme do argumento pela troca de regime (do ponto-de-vista dos que apoiam essa política) é que depende de premissas e objetivos que não podem ser declarados publicamente, pelo menos pelo governo. Já que Paul Wolfowitz é da escola intelectual de Leo Strauss — e aparece assim na ficção de Saul Bellow na novela Ravelstein — podemos até supor que ele aprecia este aspecto omitido do debate”.

Talvez nenhum acadêmico tenha feito tanto para iluminar o fenômeno Strauss como Shadia Drury. Por quinze anos ela tem colocado uma lâmpada sobre os straussianos com livros como The Political Ideas of Leo Strauss(1988) e Leo Strauss and the American Right (1997). Ela também é autora de Alexandre Kojève: the Roots of Postmodern Politics (1994) e Terror and Civilization (a ser publicado).

Argumenta que os pontos centrais do pensamento straussiano têm influência crítica nos homens de poder contemporâneo nos Estados Unidos. Ela trata disso nesta entrevista:

Uma ordem natural de desigualdade

Danny Postel: Você argumenta que existe uma importante conexão entre os ensinamentos de Leo Strauss e o a forma como o governo Bush vendeu a guerra do Iraque. Qual é a conexão?

Shadia Drury: Leo Strauss era um grande crente na eficácia e na utilidade das mentiras na política. O apoio público para a guerra do Iraque se baseou em mentiras sobre o Iraque representar uma ameaça iminente aos Estados Unidos — a questão das armas de destruição em massa e a aliança fictícia entre a Al-Qaeda e o regime iraquiano. Agora que as mentiras foram expostas, Paul Wolfowitz e outros do partido da guerra estão negando que estas tenham sido as razões reais para a guerra. Quais foram então as verdadeiras razões? Reorganizar o equilíbrio de poder no Oriente Médio em favor de Israel? Expandir a hegemonia dos Estados Unidos no mundo árabe? Possivelmente. Mas estas razões não seriam em si suficientemente fortes para mobilizar o apoio dos norte-americanos para a guerra. E a cabal straussiana no governo se deu conta disso.

Danny Postel: A visão dos neoconservadores é comumente identificada com exportar democracia e valores liberais globalmente. E quando Strauss é mencionado na imprensa, ele é tipicamente descrito como um grande defensor da democracia liberal contra a tirania totalitária. Você escreveu, no entanto, que Strauss tinha “uma profunda antipatia pelo liberalismo e pela democracia”.

Shadia Drury: A ideia de que Strauss era um grande defensor da democracia liberal é risível. Eu acho que os discípulos de Strauss a consideram uma mentira nobre. Ainda assim muita gente na mídia tem sido suficientemente ingênua para acreditar nela. Como pode um admirador de Platão e Nietzsche ser um democrata liberal? Os filósofos antigos que Strauss mais celebrou acreditavam que as massas sujas não estavam prontas para a verdade ou a liberdade, e que dar a elas esses tesouros sublimes seria como jogar pérolas aos porcos. Por contraste com pensadores políticos modernos, os antigos negavam que havia qualquer direito natural à liberdade. Os seres humanos não eram nascidos nem livres, nem iguais. A condição natural humana, diziam, não é de liberdade, mas de subordinação — e na avaliação de Strauss eles estavam certos de pensar assim.

Elogiar a sabedoria dos antigos e condenar a bobagem dos modernos foi o ponto central do livro mais famoso de Strauss, Direito Natural e História. A capa do livro tem uma Declaração de Independência dos Estados Unidos. Mas o livro é uma celebração da natureza — não dos direitos naturais do homem (como a aparência da capa do livro poderia levar a crer), mas da ordem natural de dominação e subordinação.

A necessidade das mentiras

Danny Postel: Qual é a relevância da interpretação que Strauss deu à noção de Platão sobre ‘mentira nobre’?

Shadia Drury: Strauss raramente falou em seu próprio nome. Ele escreveu como comentarista de textos clássicos de teoria política. Mas ele era um comentarista extremamente opinador e maniqueista. A distinção fundamental que permeia e informa todo o seu trabalho é entre os antigos e os modernos. Strauss dividiu a história do pensamento político em dois campos: os antigos (como Platão) são sábios e decididos, enquanto os modernos (como Locke e outros liberais) são vulgares e tolos. De qualquer forma, me parece eminentemente justo e razoável atribuir a Strauss as ideias que ele atribui a seus amados antigos. Nos diálogos de Platão, todos assumem que Socrates é o porta-voz de Platão. Mas Strauss argumenta em seu livro The City and Man (pp. 74-5, 77, 83-4, 97, 100, 111) que Thrasymachus é o verdadeiro porta-voz de Platão (ver também, nesse ponto M.F. Burnyeat, “Sphinx without a Secret”, New York Review of Books, 30 de maio de 1985).

Disso podemos subentender que Strauss compartilha a visão sábia de Platão (alias, Thrasymachus) que a justiça é meramente o interesse do mais forte; que os que estão no poder fazem as regras em defesa de seus próprios interesses e chamam isso de justiça. Leo Strauss repetidamente defende o realismo político de Thrasymachus e Maquiavel (veja, por exemplo, seu Natural Right and History, p. 106). Esta visão de mundo está claramente manifesta na política externa do atual governo dos Estados Unidos.

Uma segunda crença fundamental dos antigos de Strauss tem a ver com a insistência na necessidade do segredo e das mentiras. Em seu livro Persecution and the Art of Writing, Strauss descreve por que o segredo é necessário. Ele argumenta que os sábios precisam esconder seus pontos-de-vista por duas razões — para poupar o sentimento do povo e proteger a elite de possíveis vinganças. O povo não ficará feliz ao saber que existe apenas uma ordem natural — o direito dos superiores de governar os inferiores, do dono sobre o escravo, o marido sobre a mulher, dos poucos sábios contra os muitos vulgares. Em On Tyranny, Strauss se refere a este direito natural como “ensinamento tirânico” de seus amados antigos. É tirânico no sentido clássico da regra superior a todas as regras ou da ausência da lei (página 70).

Note, os antigos estavam determinados a manter o ensinamento tirânico um segredo, já que o povo não toleraria o fato de que estava destinado à subordinação; na verdade, eles poderiam usar o seu ressentimento contra o punhado de superiores. As mentiras, portanto, eram necessárias para proteger os poucos superiores da perseguição dos muitos vulgares.

O efeito do ensinamento de Strauss é de convencer seus acólitos de que eles são a elite governante natural e os poucos perseguidos. E não é preciso ter muita inteligência para concluir que eles estão de fato numa situação de grande risco, especialmente num mundo devotado às ideias de direitos e liberdades para todos. Agora mais que nunca, os sábios devem proceder com cautela e circunspecção. Assim, eles chegam à conclusão que tem uma justificativa moral para mentir como forma de evitar perseguição. Strauss chega a ponto de dizer que a enganação e a mentira — na verdade, a cultura das mentiras — é a justiça peculiar dos sábios. Strauss justifica sua posição apelando para o conceito de ‘mentira nobre’ de Platão. Mas, na verdade, Strauss tem um conceito empobrecido da ‘mentira nobre’ de Platão. Platão achava que a ‘mentira nobre’ era uma história com detalhes fictícios mas que no coração guardava uma verdade profunda.

No mito dos metais, por exemplo, algumas pessoas têm almas douradas — significando que são mais capazes de resistir às tentações do poder. E esses tipos moralmente confiáveis são os mais capazes de governar. Os detalhes são fictícios, mas a moral da história é que todos os seres humanos são moralmente iguais.

Em contraste com esta leitura de Platão, Strauss acredita que a superioridade dos filósofos governantes é uma superioridade intelectual e não moral (Natural Right and History, página 151). Para os muitos que leram Platão como totalitário (como Karl Popper), a consequência lógica é duvidar que filósofos devam receber o poder político. Aqueles que leram Platão assim, invariavelmente o rejeitaram. Strauss é o único intérprete que tem uma leitura sinistra de Platão e ainda assim o celebra.

A dialética do medo e a tirania

Danny Postel: No esquema straussiano existem os poucos sábios e os muitos vulgares. Mas também existe um terceiro grupo — os cavalheiros. Poderia explicar quem são?


Shadia Drury: Existem de fato três tipos de homens: os sábios, os cavalheiros e os vulgares. Os sábios são os amantes da verdade dura e não adulterada. Eles são capazes de olhar no abismo sem medo ou tremor. Eles não reconhecem nem Deus, nem imperativos morais. Eles são devotos acima de tudo de sua busca por prazeres “maiores”, o que significa se juntar a suas “crias” ou jovens iniciados. O segundo tipo, os cavalheiros, são amantes da honra e da glória. Eles são os que mais se interessam pelas convenções da sociedade — ou seja, a ilusão da caverna. São crentes em Deus, na honra e nos imperativos morais. São capazes e desejosos de embarcar em atos de grande coragem e autosacrifício a qualquer tempo.

O terceiro tipo, os muitos vulgares, é o dos amantes da riqueza e do prazer. São egoístas e indolentes. Só podem ser convencidos de ir além de sua existência bruta pelo medo da morte ou da catástrofe iminente. Como Platão, Strauss acreditava que o ideal político supremo era o governo dos sábios. Mas o governo dos sábios é inalcançável no mundo real. Mas, de acordo com o senso comum, Platão conseguiu isso e escolheu o governo das leis. Mas Strauss não endossa esta solução inteiramente. Nem pensa que era a verdadeira solução de Platão — Strauss aponta para o “conselho noturno” nas Leis de Platão para ilustrar este argumento.

A verdadeira solução platônica como entendida por Strauss é o governo disfarçado dos sábios (ver The Argument and the Action of Plato’s Laws, de Strauss). Este governo disfarçado é facilitado pela grande estupidez dos cavalheiros. Quanto mais ingênuos ou incapazes eles forem, melhor para que os sábios os controlem e manipulem. Supostamente, Xenophon deixa isso claro para nós. Para Strauss, o governo dos sábios não trata de valores clássicos como ordem, estabilidade, justiça e respeito pela autoridade. O governo dos sábios é visto como um antídoto para a modernidade. A modernidade é a época em que os muitos vulgares triunfaram. É a idade em que eles chegaram mais perto exatamente do que os corações deles desejam — riqueza, prazer e entretenimento sem fim. Mas ao conseguir o que desejam, eles foram reduzidos a bestas.

Em nenhum outro lugar este estado de coisas está mais avançado que nos Estados Unidos. E o alcance global da cultura norte-americana ameaça trivializar a vida e torná-la um entretenimento. Isso era uma espectro aterrador para Strauss, da mesma forma que para Alexandre Kojève e Carl Schmitt.

Isso fica claro na discussão entre Strauss e Kojève (impressa em On Tyranny, de Strauss) e no seus comentários sobre The Concept of the Political, de Schmitt (reimpresso em The Hidden Dialogue, de Heinrich Meier, Carl Schmitt e Leo Strauss). Kojève lamenta a animalização do homem e Schmitt se preocupa com a trivialização da vida. Os três estão convencidos de que a economia liberal transforma a vida em entretenimento e destrói a política; todos entendiam a política como um conflito entre grupos mutualmente hostis dispostos a lutar com o outro até a morte. Em resumo, todos entendem a humanidade do homem como sua disposição de correr nu para a batalha e de cara aberta para a morte. Somente a guerra perpétua pode acabar com o projeto moderno, com sua ênfase na autopreservação e nas “criaturas do conforto”. A vida pode voltar a ser politizada e a humanidade do homem, restaurada.

Esta visão terrível se encaixa perfeitamente bem no desejo de honra e glória que os cavalheiros do movimento neoconservador perseguem. Também se encaixa muito bem nas sensibilidades religiosas dos cavalheiros. A combinação de religião e nacionalismo é o elixir que Strauss advoga para transformar homens hedonistas, naturais e relaxados em devotos nacionalistas dispostos a lutar e morrer pelo seu Deus e seu país. Nunca imaginei quando escrevi o meu primeiro livro sobre Strauss que a elite sem escrúpulos que ele defende poderia chegar tão perto do poder político, nem que a terrível tirania dos sábios chegaria tão perto de se realizar na vida política de uma grande nação como os Estados Unidos. Mas o medo é o maior aliado da tirania.

Danny Postel: Você descreveu o Strauss como niilista.


Shadia Drury: Strauss é niilista na medida em que acredita que não há fundação racional para a moralidade. Ele é ateu e acredita que na ausência de Deus a moralidade não tem base. É sobre beneficiar aos outros e a si mesmo; não há razão objetiva para fazer isso, apenas punições e recompensas nesta vida. Mas Strauss não é um niilista se isso significa a negativa sobre a existência da verdade, uma crença de que não passa de interpretação. Ele não nega que exista uma realidade independente. Ao contrário, ele pensa que a realidade independente consiste na natureza e sua “ordem de ranqueamento” — os altos e os baixos, o superior e o inferior. Como Nietzsche, ele acredita que a história da civilização ocidental levou ao triunfo dos inferiores, a ralé — algo que ambos lamentaram profundamente.

Danny Postel: Esta conexão é curiosa, já que Strauss é assombrado por Nietzsche; um dos estudantes mais famosos de Strauss, Allan Bloom, fulmina profundamente em seu livro The Closing of the American Mindcontra a influência de Nietzsche e de Martin Heidegger.

Shadia Drury: A crítica de Strauss aos existencialistas, especialmente Heidegger, é que eles tentaram derivar uma ética do abismo. Era a ética da determinação — faça sua escolha e seja leal a isso até a morte; o conteúdo não importa. Mas a reação de Strauss ao niilismo moral era diferente. Filósofos niilistas, ele acredita, deveriam reinventar o Deus judaico-cristão, mas viver como deus pagãos — tirando prazer dos jogos que jogam uns com os outros e também dos jogos que praticam com os mortais comuns.

A questão do niilismo é complicada, mas não há dúvida que a leitura que Strauss fez de Platão significa que os filósofos deveriam retornar à caverna e manipular as imagens (na forma de mídia, revistas, jornais). Eles sabem muito bem que o que defendem é mentiroso, mas estão convencidos de que suas mentiras são nobres.


A intoxicação da guerra perpétua

Danny Postel: Você caracteriza o perfil do governo Bush como uma espécie de realismo, no espírito de Thrasymachus e Maquiavel. Mas não é a verdadeira divisão no governo (e na direita norte-americana mais geralmente) mais complexa: entre realistas na política externa, que são mais pragmáticos, e os neoconservadores, que se enxergam como idealistas — até mesmo como moralistas — numa missão de derrubar tiranos e, assim, em luta contra os realistas?



Shadia Drury: Penso que os neoconservadores são quase sempre genuínos quando dizem que querem espalhar o modelo comercial norte-americano de democracia liberal em todo o mundo. Eles estão convencidos de que é a melhor coisa, não apenas para os Estados Unidos, mas para o mundo. Naturalmente, existe uma tensão entre estes “idealistas” e os realistas mais duros dentro do governo. Eu argumento que as tensões e conflitos dentro do governo refletem as diferenças entre o ensinamento superficial, que é apropriado para os cavalheiros, e o ensinamento “noturno”, clandestino, que só os filósofos podem alcançar. É muito pouco provável que uma ideologia inspirada num conhecimento secreto seja totalmente coerente.

A questão do nacionalismo é um exemplo disso. Os filósofos, buscando segurança da nação contra seus inimigos externos bem como contra a decadência, o prazer e o consumo internos, encorajam um forte fervor patriótico entre os cavalheiros que amam a honra e tem nas mãos o poder. O forte espírito nacionalista consiste na crença de que aquela nação e seus valores são os melhores do mundo, e que todas as outras culturas e seus valores são inferiores por comparação.

Irving Kristol, o pai do neoconservadorismo e discípulo de Strauss, denunciou o nacionalismo num ensaio de 1973; mas em outro ensaio, escrito em 1983, ele declarou que a política externa do neoconservadorismo deveria refletir tendências nacionalistas. Uma década depois, num ensaio de 1993, ele argumentou que “religião, nacionalismo e crescimento econômico eram os pilares do neoconservadorismo”. (Veja “The Coming ‘Conservative Century’”, em Neoconservatism: the autobiography of an idea, p. 365.)

Em Reflections of a Neoconservative (p. xiii), Kristol escreveu que: “o patriotismo nasce do amor pelo passado de uma nação; o nacionalismo nasce da esperança no futuro na nação, de sua grandeza distintiva… os neoconservadores acreditam… que os objetivos da política externa dos Estados Unidos deveriam ir muito além de uma definição estreita e literal de ’segurança nacional’. É o interesse nacional de um poder mundial, definido como sentimento do destino nacional… não de uma segurança nacional míope”.

O mesmo sentimento ecoa no papa do straussianismo contemporâneo, Harry Jaffa, quando ele diz que os Estados Unidos são “o Zion que vai iluminar o mundo”.

É fácil de entender como esse tipo de pensamento pode ficar fora de controle e porque muitos realistas acham que é ingênuo e perigoso. Mas as preocupações de Strauss com as aspirações globais dos Estados Unidos são completamente diferentes. Como Heidegger, Schmitt e Kojève, Strauss está mais preocupado com o sucesso dos Estados Unidos nesta tarefa do que com o seu fracasso. Naquele primeiro caso, o “último homem” extinguiria toda a esperança na Humanidade (Nietzsche), a “noite do mundo” teria chegado (Heidegger); a animalização do homem seria completa (Kojève); a trivialização da vida seria alcançada (Schmitt). Isso é que o sucesso das aspirações globais dos Estados Unidos significaria para eles.

O Fim da História e o Último Homem, de Francis Fukuyama, representam a popularização deste ponto-de-vista. Ele antevê a catástrofe do poder global dos Estados Unidos como inevitável e busca tirar o melhor de uma situação ruim. Não é uma celebração da dominação norte-americana, longe disso. Nesta perversa visão de mundo, se os Estados Unidos fracassarem no alcance de seu “destino nacional” e se envolverem em uma guerra perpétua, tudo está bem. A humanidade do homem, definida em termos da luta contra a morte, está resgatada da extinção. Mas homens como Heidegger, Schmitt, Kojève e Strauss esperam pelo pior. Eles acreditam que o alcance universal do espírito do comércio ameça amolecer os comportamentos e emascular os homens. Em minha opinião, esta glorificação fascista da morte e da violência nasce de uma profunda incapacidade de celebrar a vida, o prazer e a pura emoção da existência.

Para ser mais clara, Strauss não era tão hostil à democracia quanto ao liberalismo. Isso porque ele reconhece que as massas vulgares tem os números ao lado delas e o simples poder dos números não pode ser completamente ignorado. O que quer que possa ser feito para trazer as massas para seu lado é legítimo. Se você pode usar a democracia para jogar as massas contra sua própria liberdade, é um grande triunfo. É o tipo de tática que os neoconservadores usam consistentemente, e algumas vezes com muito sucesso.

Entre os straussianos


Danny Postel: Finalmente, gostaria de te perguntar sobre a curiosa recepção dada a você pelos straussianos. Muitos descartam sua interpretação de Strauss e denunciam seu trabalho em termos inflexíveis (“bizarro”). Ainda assim, um acadêmico, Laurence Lampert, repreendeu seus colegas straussianos, escrevendo em seuLeo Strauss and Nietzsche que seu livro The Political Ideas of Leo Strauss “contém muitas leituras céticas dos textos de Strauss e sacadas agudas sobre as verdadeiras intenções dele”. Harry Jaffa sugeriu de forma provocativa que você é straussiana no armário.

Shadia Drury: Fui denunciada publicamente e adorada privadamente. Depois da publicação do The Political Ideas of Leo Strauss em 1988, cartas e presentes de estudantes e professores straussianos chegaram de toda a América do Norte, fitas com as aulas dele na Hillel House de Chicago, transcrições de todos os cursos que ele deu na universidade, até mesmo uma escultura de uma Coruja de Minerva com uma carta me declarando a deusa da sabedoria! Eles ficaram surpresos como é que uma pessoa de fora poderia penetrar num ensinamento secreto. Eles me mandaram material não publicado marcado com claras instruções para não distribuir para “pessoas suspeitas”. Recebi cartas de estudantes de Toronto, Chicago, Duke, Boston College, Claremont, Fordham e outros centros de “ensino” straussiano. Um dos estudantes comparou sua experiência na leitura de meu trabalho como “uma pessoa perdida na imensidão que de repente encontra um mapa”. Alguns foram levados a trocar suas escolas por ar fresco; mas outros ficaram felizes ao descobrir no que deveriam acreditar para poder pertencer ao charmoso círculo de futuros filósofos e iniciados.

Depois de meu primeiro livro sobre Strauss, alguns straussianos do Canadá me batizaram de “puta de Calgary”. De todos os meus títulos, é o que mais me orgulha. A hostilidade dá para entender. Nada é mais ameaçador para Strauss e seus acólitos que a verdade em geral e a verdade sobre Strauss em particular. Os admiradores dele estão dispostos a esconder a verdade sobre suas ideias.

Minha intenção ao escrever o livro foi expressar as ideias de Strauss com clareza para que elas pudessem se tornar objeto de debate e crítica filosófica e não de fervorosa convicção. Eu queria jogar fumaça para tirar os straussianos das cavernas e trazê-los para a luz filosófica do dia. Mas em vez de se engajar em debate filosófico, eles negaram que Strauss representava qualquer das ideias que atribui a ele. Laurence Lampert é o único straussiano que declarou valentemente que é hora de parar de jogos e admitir que Strauss era um pensador na linha de Nietzsche — que é hora de parar de negar e de começar a defender as ideias de Strauss. Eu suspeito que a honestidade de Lampert é ameaçadora para os straussianos que estão interessados na filosofia mas buscam o poder. Não há dúvida de que um debate aberto sobre Strauss provavelmente diminuiria a perspectiva deles em Washington.

PS do Viomundo: Embora antigo, esse texto ainda hoje ajuda a iluminar a tração que a extrema direita deriva, nos Estados Unidos, do milenarismo sustentado em ameaças externas (Aceb informa, sai a islamofobia, entra a sinofobia), que justifica a guerra perpétua. Curioso notar como o complexo industrial-militar assumiu a hegemonia econômica e logo se apresentaram à sociedade os filósofos para justificar o estado de alerta permanente. Não menos interessante é o fato de que muitos neoconservadores migraram da esquerda, preservando intacto o arcabouço intelectual segundo o qual fazem parte de uma elite iluminada, pronta para tanger o gado.

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