No auge do movimento, atingiu-se mais de 600 pontos de paralisação nas estradas brasileiras. (Foto: Valter Campanato/Agência Brasil)
Erick Kayser (*)
Foram dez dias de greve dos caminhoneiros em todo o Brasil. Em pouco tempo, um país com um presidente desmoralizado e governo paralisado viu a economia nacional quase colapsar. Se é verdade que causas estruturais devem ser levadas em conta para entender as raízes desta greve e como de forma tão veloz o país quase parou, os erros do governo Temer foram decisivos. Se o aspecto mais evidente dos equívocos é sua política volátil de altas de preços dos combustíveis executadas pela Petrobras, o despreparo político de Temer para enfrentar a conjuntura de crise foi espantosa.
Os sinais de descontentamento eram já conhecidos. Os próprios caminhoneiros, fragilmente organizados, buscaram interlocução junto ao governo para evitar a paralisação, sem que jamais houvesse canal de negociação. Nada que surpreenda, afinal, como esperar disposição para o diálogo de um governo que só existe através de uma manobra antidemocrática? No entanto, mesmo em seu autoritarismo, mais uma vez o governo Temer beirou ao patético. Após anunciar uma solução autoritária para acabar com a paralisação dos caminhoneiros, através do uso das forças armadas, Temer acabaria na prática recuando, a ação militar nas estradas foi pontual e sem a performatividade violenta por ele anunciada. A sensação de que o governo teria feito uma mera bravata se disseminou. A greve, no entanto, foi efetivamente encerrada com pacote de concessões do governo cuja maior conquista para a categoria foi o desconto de R$ 0,46 sobre o preço do litro do óleo diesel. Mesmo com esta aparente vitória, o governo saiu ainda mais fragilizado.
Pensar o balanço deste movimento e, principalmente, seus desdobramentos, neste momento é ainda difícil de forma conclusiva. A seguir se tentará esboçar pontos de um dos aspectos principais sobre os efeitos (diretos ou indiretos) desta recente luta dos caminhoneiros, que é sobre como esta greve permitiu um novo impulso para as forças fascistas ganharem evidência, ampliando os riscos de saídas antidemocráticas para o país.
Esta penetração de forças reacionárias no movimento dos caminhoneiros só pode ter este relativo êxito por saber aproveitar-se das ambiguidades inerentes a paralisação. Os aspectos políticos contraditórios que emergiram na greve já surgem na própria compreensão do caráter desta paralisação. Pelas informações disponíveis, é seguro afirmar que houve sim locaute patronal, mas também houve mobilizações descentralizadas de trabalhadores autônomos hiperexplorados e assim como momentos de greve selvagem. Resumindo, não foi um ou outro aspecto que prevaleceu, mas, de um ponto de vista nacional, foi tudo isso junto e misturado.
No auge do movimento, atingiu-se mais de 600 pontos de paralisação nas estradas brasileiras, mostrando certa eficácia na forma descentralizada de mobilização. Com grande presença patronal e adesão de motoristas autônomos e precarizados, estes se organizaram não através de sindicatos, mas por grupos de WhatsApp. As ambiguidades não ficam “apenas” na composição social do movimento paredista. Se por um lado a paralisação gerou consequências negativas que afetaram parcela expressiva da população com a crise de abastecimento (potencializada pela histeria da classe média estocando produtos), mesmo com estes efeitos, 87% dos brasileiros apoiaram a greve, segundo pesquisa do Datafolha. Se estes números estiverem corretos, a greve recebeu apoio em todo o espectro político, tanto a esquerda quanto a direita, estiveram inseridas neste movimento, de forma difusa e até contraditória. A massificação do apoio a paralisação, assim como a potencialidade (não confirmada) de desdobrar-se em um multitudinário protesto da sociedade contra Temer, chegaram a motivar comparações deste movimento dos caminhoneiros com as mobilizações de Junho de 2013.
Não julgo esta comparação correta, são momentos muito distintos. Para além do eixo “transporte” ser mais uma vez o catalisador – em 2013 o preço das passagens do transporte público nas grandes cidades; em 2018 o preço do diesel no transporte de cargas –, os maiores paralelos possíveis estão na forma inesperada, para maioria das pessoas, com que o movimento irrompeu em todo o país; o uso das redes sociais para viabilizar os protestos, articular e informar (ou desinformar) sobre o que estava acontecendo e, ainda mais notável, a forma como o discurso midiático repetiu quase o mesmo roteiro de 2013 para narrar os fatos, usando inclusive mesmos adjetivos e simbologias. Primeiramente condenando o movimento, rapidamente os telejornais passaram a prestar apoio, mas de forma seletiva, apontando justeza das reivindicações, mas apelando para a volta da normalidade e acusando a presença de “infiltrados” radicalizando os protestos e ofuscando o “herói caminhoneiro” que deseja apenas o bem do país.
Mas as semelhanças param por aí. As “vanguardas” são completamente distintas. Se em 2013 tínhamos um Movimento Passe Livre (MPL) liderando as primeiras manifestações em São Paulo, decisiva para nacionalizar os protestos de junho e com uma postura politica de esquerda; em 2018, surgem personagens como o presidente da Associação Brasileira dos Caminhoneiros (Abcam), José da Fonseca Lopes, filiado ao PSDB há mais de 20 anos e candidato a deputado pelos tucanos em 1998. A Abcam e seu presidente, por sinal, com suas relações umbilicais com a Confederação Nacional dos Transportes (CNT), entidade patronal do setor, tornam o aspecto “grevista” dos caminhoneiros controverso, reforçando a percepção que houve locaute.
Os desdobramentos nas disputas e narrativas políticas tendem a ser radicalmente distintas entre junho de 2013 e maio de 2018. Fundamentalmente, para além de outros aspectos sociais e políticos, temos uma democracia golpeada, com sua crise institucional quase insolúvel, onde a própria Constituição parece ceder lugar a toda a sorte de arbítrio e usurpação.
Nestes dois anos de governo Temer, com o desemprego massificado, a queda na renda dos trabalhadores empregados e o aumento da violência, tornam o apelo a “ordem” sedutor para muitos em um Brasil em crise e sem perspectivas visíveis de solução. Em meio a disputa política natural que ocorreu entre diferentes forças e posições políticas no interior deste movimento de massas dos caminhoneiros, com a presença de grupos claramente populares e progressistas, acabou ganhando maior visibilidade os chamados “intervencionistas militares”.
Presentes em todo o país, aparentemente com mais força nos estados do sul, em geral tiveram uma atuação exógena ao movimento dos caminhoneiros. Eram pessoas com pouco ou nenhum vínculo com as categorias dos transportes, organizadas em pequenos grupos e de forma descentralizada, buscaram se associar a greve, chegando em alguns casos a mostrar certos níveis de força e organização surpreendentes, mas sem contar com apoio de dentro da caserna, pelo menos por hora. Um governo fraco e desmoralizado e a crise econômica, tornam o cenário perfeito para que uma situação de caos aparente seja potencializada. Nesta crise, houve esforços deliberados para tornar a sensação de caos, mais do que uma sensação.
Esta ação é perceptível no que podemos chamar de momento crítico da greve, que começou na sexta-feira (25) e se aprofundou no final de semana, após o governo fracassar naquela que parecia ser sua cartada final para encerrar a greve. A percepção de que Temer poderia cair ganhou força com o aprofundamento da crise. Como apontou André Singer, na segunda-feira (28), o país parecia viver um “vazio institucional”. Ao longo deste dia, os apelos generalizados em defesa da democracia por integrantes do governo ilegítimo, de lideranças políticas de todos os partidos, de membros das forças armadas e da presidenta do STF, expôs a dimensão que o apelo intervencionista ganhou. O temor que em 2018 poderíamos viver a tragédia de um novo golpe deixou de ser uma mera “paranoia” ou pessimismo de alguns e está definitivamente colocada na pauta nacional.
É nítido que a greve dos caminhoneiros foi usada adubar as sementes plantadas do caos, esperando futuramente colher ilusões fardadas, baseadas em salvacionismos autoritários delirantes. Os atos de rua pró-intervenção militar, na maioria das vezes, foram de pequenos grupos sem peso social, fora poucos atos políticos mais expressivos, além de ações isoladas de perigosa radicalidade. Destes casos, como a morte a pedrada de um caminhoneiro em Vilhena (RO) ou ainda a ação de sabotagem que fez um trem carregado com diesel descarrilar em Bauru (SP), talvez o mais preocupante sejam as denúncias em estados como RS, PR e MS do uso de milícias armadas, formadas por jagunços ligados a ruralistas e empresários, para ameaçar caminhoneiros e forçar suas paradas.
Isolados politicamente, estas ações violentas e criminosas da extrema-direita ocorrem sem que pareça haver uma resistência maior das instituições. A impunidade estimula que a violência política ganhe impulso. Os atiradores contra o ônibus da caravana do Lula no Paraná, para não falar dos assassinos da vereadora Marielle Franco, seguem livres e são exemplos eloquentes desta permissividade do aparato repressivo do Estado para crimes políticos.
Ainda que a desinformação seja generalizada entre os apoiadores de um golpe militar, muitas vezes beirando o ridículo, não deve ser desprezado o seu alcance. O fato de haver um candidato presidencial fascista com força nas pesquisas eleitorais é preocupante. O que vimos nesta crise pode ter servido como uma espécie de ensaio geral para uma futura tentativa de golpe armado. Ainda que no fatídico dia 28 até Jair Bolsonaro tenha publicamente condenado a intervenção militar e defendido as eleições, esse gesto deve ser matizado. Uma possível estratégia do Bolsonaro e outros políticos profissionais da extrema-direita poderia ser estimular uma crise no limite da ruptura, com novas ocorrências de ações radicalizadas, buscando colher dividendos eleitorais para conquistar o poder pelo voto, mas deixando o “plano B” aberto. Caso não ganhem no voto, poderiam alegar fraude nas urnas eletrônicas (ou coisas do gênero) para tentar um golpe.
Por mais quixotesca que possa parecer em muitos momentos as ações dos intervencionistas militares, não convêm subestimar a gravidade desta opção politica colocada. Como bem pontuou Luis Fernando Veríssimo sobre este episódio, “O Brasil alterou a famosa frase do Marx. Aqui, a história não se repete como farsa, as farsas se repetem como história.”
Em tempo, a Presidenta do STF, ministra Carmem Lúcia, “em resposta a crise”, desengavetou um mandado de segurança de 1997, que questionava a possibilidade do Congresso aprovar uma PEC instaurando o parlamentarismo sem a necessidade de um plebiscito. Caso a maioria dos ministros decida que o sistema político possa mudar apenas com uma emenda, não será mais preciso ouvir a população, demostrando que não apenas de ilusões fardadas se alimentam as saídas autoritárias para a crise brasileira.
(*) Historiador
Sul 21