Por Leonardo Segura Moraes
Créditos da foto: (Reuters)
Como resposta, o chefe de Estado iraniano Ali Khamenei prometeu honrar o sangue derramado e desde então a cobertura midiática tem em grande medida se pautado em especulações sobre qual seria o tipo de vingança oriunda da República Islâmica do Irã[iii]. Além disso, comenta-se também se teria respaldo legal a atitude do governo Trump ou se trata de uma ação eleitoreira, a qual, contudo, desencadeou o recente aumento de tensões entre os países[iv]. Também se fala sobre os impactos no preço do petróleo[v].
Apesar das incertezas próprias de quando se vive momentos em que a fogueira da história é atiçada com gasolina, parece claro que o ataque do governo estadunidense não se trata de medida isolada, mas é constituído de sentido. Não por acaso, em 2018, liderados por Trump os EUA se retiraram do acordo nuclear com o Irã firmado em 2015 pelo então governo Obama, e que, entre outros pontos, previa a redução no enriquecimento de urânio por parte do Irã, garantindo, assim, o programa nuclear iraniano apenas para fins civis.
Para além das especulações e procurando construir uma análise concreta da situação concreta, uma primeira observação à luz da comoção popular[vi] tanto no Irã como no Iraque, sugere fortalecimento em nível nacional e regional do atual regime político iraniano. Trata-se de uma mudança de rumos, haja visto que desde o final de 2018 uma série de protestos e greves têm sacudido o país[vii]. A insatisfação das classes populares ganhou força a partir das greves promovidas na Haft Tappeh, um complexo agroindustrial privatizado em 2015, seguidas por mobilizações de professores, estudantes e caminhoneiros[viii]. Entre as causas estão a deterioração das condições de trabalho e o encarecimento da cesta de subsistência de classe trabalhadora.
Contudo, a economia iraniana não apresenta sinais de crise como sugere, por exemplo, o Fundo Monetário Internacional (FMI)[ix]. De acordo com a organização multilateral, o PIB real projetado para 2020 no será de -9,5% e acompanhado de forte aceleração inflacionária. De fato, um dos motivos declarados pelos manifestantes iranianos para a recente explosão de insatisfação diz respeito ao aumento no preço de itens básicos do consumo diário, como é o caso de combustíveis. Mas é preciso cuidado para não se analisar apenas a ponta do iceberg, ainda que partir dela seja uma pista para investigar o real.
De acordo com o Centro de Estatísticas do Irã [x], tomando o ano iraniano de 1390 como base (março de 2011 a março de 2012), a produção industrial manufatureira no país parece ter retomado desde meados de 2014. As informações disponíveis indicam que entre março desse ano e março de 2016 houve crescimento real da ordem de 4% ao ano. Embora tenha desacelerado, entre 2016 e 2018 esse indicador da atividade industrial iraniana seguiu positivo em torno de 3,5% ao ano. Vale notar que cerca de ¼ do valor adicionado na indústria iraniana é da manufatura. Já nos EUA, a tendência não parece tão favorável assim[xi].
É provável que esse crescimento ocorreu pela utilização de capacidade ociosa, pois, de acordo com os documentos A Selection of Labour Force Survey Results, da instituição iraniana de informações estatísticas anteriormente mencionada, entre 2016 e 2018 o desemprego se manteve relativamente estável em torno de 12% da população economicamente ativa do país (acima dos 10 anos de idade). É preciso destacar também que houve queda sistemática no valor adicionado na construção civil entre 2011 e 2016, indicando alguma recuperação a partir de 2017 com crescimento da ordem de 3% ao ano entre 2017 e 2018.
Analisando as informações disponibilizadas no que diz respeito à diversidade de atividades econômicas no Irã, nota-se elevado peso da mineração e da extração de petróleo e gás natural. Cerca de 45% do PIB iraniano a preços de mercado entre março de 2017 e março de 2018 foi oriundo dessas atividades econômicas. Convém destacar a expansão no valor adicionado por esses ramos da indústria iraniana desde 2014, com destaque para o período 2014-2015 em que o valor adicionado de ambas atividades variou positivamente mais de 30%. Embora tenha diminuído o ritmo, o crescimento segue e deve se manter após o anúncio oficial de nova descoberta de campo petrolífero no país, cujas estimativas iniciais sugerem potencial de incrementar as reservas totais do Irã em mais de 50 bilhões de barris[xii].
A recente onda de protestos no Irã se deve em grande medida como reação à retirada de subsídios nos preços de energia e combustíveis aprovada ainda em 2010 e que vem paulatinamente ocorrendo desde então. Para se ter uma ideia do significado econômico dessa política, em abril de 2014 o governo iraniano aprovou aumento de até 75% no preço por litro dos combustíveis no país[xiii]. Em contrapartida, constata-se crescimento expressivo no valor adicionado de atividades financeiras e de seguros, isto é, do capital portador de juros, cerca de 10% ao ano entre 2015-2018. Além disso, as evidências apontam que entre 2011 e 2018 o crescimento da renda da terra e outras atividades locatárias relacionadas apenas foi interrompido no interregno 2014-2015.
A retirada dos subsídios sobre energia e combustíveis tem afetado severamente as condições sociais no país e tudo indica estar na origem dos protestos recentes[xiv]. Basta ver, por exemplo, que, embora a medida de desigualdade do coeficiente de Gini apresente tendência de queda desde 2001, a partir de 2013 se observa crescimento seguido no indicador. Se em 2001 era 0,4304, entre 2013-2014 foi 0,3650 e desde então seguiu aumentando até alcançar 0,3981 entre 2017-2018. Ou seja, a desigualdade no país parece estar aumentando concomitantemente com a expansão das atividades econômicas e o crescimento do PIB.
O ataque do governo Trump, que culminou no assassinato de uma das principais figuras políticas e militares do Irã, pode ter jogado um balde de água fria nas mobilizações econômicas populares em curso no país. Em vez de enfraquecer o atual regime iraniano, como reiteradamente almeja a política externa estadunidense, tal atitude tende a forjar uma unidade nacional contrária aos interesses dos EUA, hipótese a ser verificada após as eleições legislativas que ocorrerão em fevereiro de 2020 no país asiático. Essa atitude pode ter sido indicativo de certo desespero do presidente estadunidense Donald Trump frente o avanço do processo de impeachment contra sua administração e a aproximação do calendário eleitoral nos EUA. Também coloca pressão em seus aliados, notadamente União Europeia, Arábia Saudita e Israel. Resta acompanhar os desdobramentos desse episódio, que dificilmente ficará por isso mesmo.
Leonardo Segura Moraes Professor no Instituto de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal de Uberlândia – IERI/UFU e pesquisador do Núcleo de Estudos e Pesquisas dos Países da América do Sul da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – NEPPAS/UFRGS
[ i] https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2020/01/03/tv-posta-video-de-suposto-ataque-de-drone-que-matou-general-do-ira.htm
[ii] https://www.reuters.com/article/us-iraq-security-blast-usa-trump/trump-says-ordered-killing-of-iranian-general-to-prevent-war-not-start-one-idUSKBN1Z223S
[iii] https://www.sul21.com.br/ultimas-noticias/internacional/2020/01/qual-sera-a-reacao-do-ira-ali-khamenei-promete-uma-vinganca-severa/
[iv] https://www.nbcnews.com/news/world/was-it-legal-donald-trump-order-killing-top-iranian-general-n1109961
[v] https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,ataque-dos-eua-ao-ira-faz-petroleo-disparar-e-derruba-bolsas-em-todo-o-mundo,70003142500
[vi] https://www.bbc.com/news/world-middle-east-50991810
[vii] https://www.nytimes.com/2019/12/01/world/middleeast/iran-protests-deaths.html
[viii] https://www.marxist.com/iranian-working-class-begins-to-move-again.htm
[ix] https://www.imf.org/en/Countries/IRN
[x] https://www.amar.org.ir/english
[xi] https://www.reuters.com/article/us-usa-economy/u-s-manufacturing-dives-to-10-year-low-as-trade-tensions-weigh-idUSKBN1WG47G
[xii] https://oilprice.com/Energy/Energy-General/Iran-Announces-The-Biggest-Oil-Discovery-Of-2019.html
[xiii] https://www.economist.com/pomegranate/2014/04/30/cut-those-subsidies
[xiv] Nesse sentido, ver Arvin Khoshnood, ‘Poverty in Iran: a critical analysis’, Middle East Policy, vol. 26, n. 1, 2019. Disponível em: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/epdf/10.1111/mepo.12400
Carta Maior
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