Como as configurações políticas mudam incessantemente, adjudicar a determinada facção o papel de representante único da esquerda num país tão grande e variado não se justifica. Ser de esquerda hoje no Brasil é lutar pela democracia tendo em vista a plena realização de seus valores aqui e alhures
por Paul Singer
A esquerda brasileira não nasceu ontem. Sua história remonta ao início do século XX, com a vinda de farta imigração europeia a partir da proibição do tráfico negreiro em 1850, logo seguida da aprovação de leis como a do Ventre Livre e dos Sexagenários, que visavam à abolição da escravatura, alcançada só em 1888 depois de muita luta. Esses eventos compõem o que pode ser considerada a primeira revolução social a ter lugar no Brasil.
A esse respeito, Florestan Fernandes, em A integração do negro à sociedade de classes, relata: “De um lado, a revolução abolicionista, apesar do seu sentido e conteúdo humanitário, fermentou, amadureceu e eclodiu como um processo histórico de condenação do ‘antigo regime’ em termos de interesses econômicos, valores e ideais políticos da ‘raça dominante’. A participação do negro no processo revolucionário chegou a ser atuante, intensa e decisiva, principalmente a partir da fase em que a luta contra a escravidão assumiu feição especificamente abolicionista. Mas, pela natureza de sua condição, não passava de uma espécie de aríete, usado como massa de percussão pelos brancos que combatiam o antigo regime” (p.4).
A vitória da revolução abolicionista em 13 de maio de 1888 abriu o Brasil à imigração europeia, que encontrou o país nos primórdios da industrialização. Em 1900, reuniu-se o primeiro congresso sindical, inaugurando a epopeia do movimento operário brasileiro, formado em seu início por anarcossindicalistas. Em 1917, muitos deles organizaram a primeira greve geral, que dominou a cidade de São Paulo por longos dias. Ao mesmo tempo, o feminismo estreou no Brasil e já em 1934 conquistou o direito de votar e ser votada para as brasileiras.
Em 1889, o Brasil se tornou uma república e Ruy Barbosa, ministro das Finanças, pôs em prática uma ousada política financeira, que ocasionou um salto adiante no processo de industrialização. Isso sem dúvida ampliou o âmbito de ação do movimento sindical, base do que pode ser considerada a etapa moderna da esquerda brasileira.
Em 1922, um pequeno grupo de sindicalistas e militantes anarquistas no Brasil aderiu à III Internacional, o Komintern formado após a vitória da Revolução de Outubro. O governo bolchevique foi o primeiro a declarar como propósito maior fomentar uma revolução mundial que abolisse o capitalismo e em seu lugar construísse, presumivelmente, um novo mundo comunista. A isso se seguiu a formação do Partido Comunista do Brasil. Até aquele momento, não havia uma esquerda institucionalizada como movimento ou partido legalizado, apenas associações de intelectuais que fundaram jornais que propagavam o socialismo e o anarquismo. Este último pregava a destruição do Estado como ato inaugural de construção de uma nova sociedade onde reinariam a liberdade, a igualdade e a fraternidade, lema da grande Revolução Francesa de 1789.
Essas recordações são indispensáveis para discutir o que é ser de esquerda no Brasil hoje. É que desde a Revolução Francesa nunca deixou de haver uma ou mais de uma esquerda, e as de hoje, para serem autênticas, não podem deixar de se identificar com as lutas das esquerdas nos últimos 225 anos, ou seja, desde o episódio que transformou o panorama político e ideológico da Europa, a qual em seguida dominou quase o mundo inteiro e a ele logrou impor sua civilização.
Ao longo desses últimos dois séculos, as esquerdas se dividiram em distintas facções por diferenças de interpretação da realidade histórica em que viviam e por divergências táticas. Por isso, penso que não pode haver uma única maneira de ser de esquerda. O processo de divisão prossegue ininterruptamente na medida em que a própria história vai alterando as premissas das teorias que procuram interpretar e em seguida prever o que o futuro reserva para a humanidade e para cada pedaço de humanidade que hoje constitui um país. Frequentemente, parte das facções de esquerda se une para enfrentar as de direita, as quais também passam por processos de fracionamento e de união, conforme a evolução da realidade social e política de cada país.
Em conclusão, como as configurações políticas mudam incessantemente, adjudicar a determinada facção o papel de representante único da esquerda num país tão grande e variado como o nosso não se justifica. Ser de esquerda hoje no Brasil é lutar pela democracia tendo em vista a plena realização de seus valores aqui e alhures. O internacionalismo da tradição de esquerda é mais do que nunca atual. Os cerca de duzentos pedaços de humanidade que compõem a ONU estão hoje em contato comercial, financeiro, artístico, cultural etc., graças às conquistas científicas da Terceira Revolução Industrial – a internet. Isso significa que a questão do que é ser de esquerda hoje no Brasil se confunde em grande medida com a questão do que é ser de esquerda em geral no mundo, que seria o denominador comum da esquerda no mundo hoje.
E como pôr em marcha as forças sociais de mudança? Entendo que essas forças são os próprios movimentos sociais. Estes surgem em geral como reação a situações de opressão e/ou flagrante injustiça. Tais situações podem ser antigas, existentes e toleradas há gerações, que se conformavam em sofrer opressão e/ou injustiça sem revolta. Mudanças dessas atitudes se devem geralmente a avanços democráticos que redefinem os direitos das pessoas, em geral alargando-os e difundindo-os entre agrupamentos até então não contemplados. O efeito de avanços parciais é frequentemente desmascarar situações de opressão e injustiça, até então tidos como “naturais”. O efeito do desmascaramento é exatamente “pôr em marcha as forças de mudança”. Portanto, se o objetivo é pôr essas forças em marcha, cumpre pautar avanços democráticos em arenas de interação social em que haja situações opressivas e/ou injustas, geralmente sob a forma de exclusão de determinadas categorias de gênero, de raça, de idade etc. do acesso a oportunidades ou a benefícios. Cumpre notar que, nesses ensejos, desmascarar equivale a conscientizar.
Mas, para além do que seria um programa de esquerda, o que fazer para acumular poder de transformação? Um programa de esquerda pode ser de um partido para disputar um pleito ou de alguma força social em luta por determinadas mudanças de estruturas sociais ou de determinados regramentos que acarretam privações ou frustrações a grupos que não as merecem. Um programa de esquerda deve refletir os valores democráticos que usualmente caracterizam as posições de esquerda. Programas de esquerda podem ser muito variados, mas inevitavelmente se devem a aprendizados decorrentes de lutas travadas no passado. Como cada agrupamento social acumula experiências próprias, é impossível especificar mais no que consiste um programa de esquerda, a não ser a fidelidade aos valores e aprendizados que as inúmeras experiências históricas das forças de esquerda no mundo oferecem como diretrizes e cômputos de erros e análises de êxitos que podem servir de advertência para uns e de inspiração para outros.
Conclusão: para acumular poder de transformação não basta que o programa de esquerda seja muito bom se em sua elaboração não tiverem participado desde o início todos aqueles de que se espera e deseja que participem em sua realização. Em suma, a experiência democrática demonstra que o engajamento e a contribuição de cada pessoa engajada podem ser cruciais; portanto, é essencial reunir o maior número possível de colaboradores na elaboração do programa e convém que estes tenham participação ativa não só em sua execução, mas também na avaliação de seus acertos e desacertos. Tanto conceber como realizar um programa de esquerda é um vasto e valioso aprendizado coletivo do qual ninguém –se for possível – deveria ser excluído.
Paul Singer é doutor em Sociologia pela USP e Secretário Nacional de Economia Solidária.
Le Monde Diplomatique Brasil
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