A greve dos caminhoneiros tem caminhado para uma mobilização da classe trabalhadora e de outros segmentos da população no sentido de criar uma relação de solidariedade com essa luta, a exemplo de produtores de leite e alimentos que, diante da possibilidade de perda do produto, doaram para trabalhadores e desempregados, numa forma de apoio a greve que tem sacudido o país nessa semana que cada vez mais vai ampliando a pauta contra a política do atual governo
por Sandro Barbosa de Oliveira
Imagem por Marcelo Camargo/Agência Brasil
A greve dos caminhoneiros iniciada na semana de 20 de maio de 2018 está contribuindo para expor diversos problemas para a classe trabalhadora e povo brasileiro, problemas oriundos do golpe parlamentar de 2016 que empossou o usurpador Michel Temer e o seu governo neoliberal na política de preços da Petrobrás. Além disso, vem mostrando problemas estruturais de nossa formação socioespacial, resultado da urbanização rodoviarista entre as décadas de 1950 e 2000, processo que gerou uma intensa segregação urbana entre as classes sociais e representações sociais distintas da história social concreta dessa mesma realidade.
O primeiro aspecto a ser compreendido é que a greve dos caminhoneiros foi organizada pelo segmento dos caminhoneiros autônomos, muitos proprietários de seus caminhões, que representam cerca de 70% da categoria dos caminhoneiros. Com a paralisação iniciada dia 21, esse segmentou contou com o apoio dos demais 30% representados por empresas do setor de transporte e logística, que foi exatamente o semento do setor ouvido na negociação com o desgoverno golpista no dia 23, mas com propostas recusadas na reunião do dia 24. O segmento dos empresários de transporte foi representado pela Associação Brasileira dos Caminhoneiros (Abcam), que reúne cerca de 700 mil caminhoneiros e conta com o apoio de 600 sindicados espalhados no Brasil. Esse segmento reivindicou a retirada de impostos como PIS, Cofins e da CIDE que estão embutidos no preço do combustível, enquanto que o segmento dos caminhoneiros autônomos questionam os preços a partir de outro problema mais profundo: a indexação dos preços dos combustíveis à flutuação do dólar e do mercado internacional.
Desde outubro de 2016, quando o governo implementou a política de indexação do preço dos combustíveis da Petrobrás ao dólar e mercado externo, tirando a autonomia da maior empresa brasileira nesse setor para favorecer os seus acionistas e colocando em questão a soberania do país, que as condições de toda a categoria de caminhoneiros só vem piorando e se precarizando ainda mais. A categoria reúne cerca de 2,3 milhões de caminhoneiros em todo o país e mostrou com essa greve que é possível parar a produção e a reprodução da economia parando a circulação das mercadorias. A greve, que tem sido chamada de paralização pela mídia burguesa, já foi vitoriosa por inverter e virar do avesso os problemas da política econômica de um país desgovernado desde 2016, que cujo pacto conservador para o golpe vem apenas tirando direitos dos trabalhadores através da contra-reforma trabalhista e da PEC 51 que congela investimentos públicos, para manter o pagamento da divida pública oriunda dos títulos do tesouro nacional ofertados a juros exorbitantes no mercado de ações.
Para compreender algumas das contradições instauradas com a greve dos caminhoneiros, pretendo problematizar a disputa ideológica sobre ela, a urbanização rodoviarista e o debate oculto das classes sociais nesse processo.
Disputas ideológicas nos discursos sobre a greve e as classes sociais
Como analisou o historiador E.P. Thompson: “classe e consciência de classe são sempre o último e não o primeiro degrau de um processo histórico real”. Então, a consciência de classe dos trabalhadores só pode advir de sua luta política direta contra os interesses do grande capital, e ela não se dá antes da luta concreta e real na produção, muito menos por uma “consciência” filosófica, sociológica ou mesmo representação da realidade social. Com efeito, o que pudemos verificar nessa primeira semana de greve foi uma confusão e desinformação a respeito da greve dos caminhoneiros no Brasil, tanto por parte da esquerda institucional como pela direita conservadora.
A confusão inicial, presente nas chamadas redes sociais, iniciou sob o argumento de que a greve seria uma espécie de locaute (lock out, em inglês) proibido por lei, que é quando empresários e proprietários de caminhões obrigam os trabalhadores pararem para prejudicar a economia e derrubar o governo. Há algo de estranho nesse argumento reproduzido também pela mídia burguesa capitalista, pois nenhum empresário faria isso explicitamente no Brasil, até porque sua maioria apoiou o golpe parlamentar de 2016 que instaurou o atual governo. O que a presença dos empresários da Abcam na reunião com o governo mostra é que esse segmento defende a redução de impostos, mas não questiona a política de preços da Petrobrás. O que essas negociações têm ocultado é que a greve foi de iniciativa dos caminhoneiros autônomos, que continuaram parados mesmo depois do governo anunciar um acordo para acalmar os ânimos dos meios de comunicação e não alardear a sociedade. No entanto, a categoria dos caminhoneiros é heterogênea e complexa para ser vista apenas pela aparente unidade política nessa greve, o que requer estudos mais aprofundados de sua composição.
Da parte da direita conservadora há uma disputa pelo discurso ideológico sobre a greve, pois pegam carona na luta dos caminhoneiros e tentam levar suas pautas de redução de impostos, de intervenção militar e de conservadorismo de seus privilégios de classe num momento de crise econômica e política escancarada, mas não questionam a política monetária e neoliberal do atual governo que ela ajudou no golpe.
A luta política dos caminhoneiros autônomos adquiriu apoio da maior parte da população brasileira, sobretudo, da classe trabalhadora, por causa do que representam para o país e pelas condições de precariedade que estão submetidos, a exemplo de outras categorias de trabalhadores que agonizam com o aumento do custo de vida, o desemprego e sentem concretamente as consequências da farsa do golpe parlamentar de 2016. A greve conta com apoio importante do setor dos Petroleiros, da Frente Brasil Popular e da Frente Povo Sem Medo, e o que ela evidencia são as condições de trabalho desses caminhoneiros, que só têm sido noticiadas nas redes sociais e mídias alternativas por causa dessa greve, ao mostrar uma realidade desconhecida pela maioria dos brasileiros: jornadas de trabalho que chegam a 24 horas diretas; em média 19 dias de trabalho longe da família; os caminhoneiros rodam cerca de 10 mil quilômetros por todo o Brasil nesses dias de trabalho; há assalariamento entre os caminhoneiros proprietários de mais de um caminhão; e eles recebem em média R$ 4 mil reais de salário ou renda, comprometida agora com o alto custo dos combustíveis e as dificuldades de negociar o frete ante flutuação dos preços e manutenção de caminhões. Entretanto, não se mostra as condições econômicas de empresas e de proprietários de vários caminhões entre os caminhoneiros autônomos, dada sua heterogeneidade e complexidade.
No entanto, as representações sociais sobre a greve dos caminhoneiros produzida pela mídia burguesa, quando tenta ludibriar os trabalhadores mentindo descaradamente sobre a circulação de medicamentos, e por certos agentes ao reproduzir o argumento de locaute e focar sua crítica apenas nas faixas de intervenção militar que parte dos caminhoneiros expõe, mostram a complexidade da categoria, da greve e das classes sociais, mas também como as representações sobre um determinado fenômeno social precisam ser reconhecidas e superadas. O sociólogo e filósofo Henri Lefebvre analisou que a representação está ligada filosoficamente ao conhecimento, porém, há uma dimensão que é de desconhecimento. Ele destacou que há uma cisão entre ser e saber que precisa ser superada, ao questionar a ideologia nos processos de representação da realidade, e expor que o tempo de trabalho abstrato socialmente necessário apagou os trabalhadores e o trabalho no processo de conhecimento, o que tem dificultado na apreensão do movimento real e apenas uma compreensão da representação da realidade. Em síntese, as pessoas tendem entender o real a partir das representações sobre a realidade e não a partir da própria realidade mediada pela teoria ou representação. Isso se verifica no fenômeno das redes sociais e na amálgama de informações e desinformações que circulam nessas redes. O aspecto mais palpável desse problema é o da chamada Fake News (notícia falsa), que não é exclusivo das redes sociais, mas que está presente e cuja origem vem de organizações como o MBL, Movimento Vem Pra Rua e outras, que disseminam notícias falsas sobre a realidade econômica e política.
Todavia, são as condições de precarização do trabalho e aumento do custo de vida, oriundos das políticas de ajuste fiscal e corte de investimento da atual política, que levam determinadas categorias a fazer greves e paralizações. A greve sempre é o último ato de quem não conseguiu chegar num acordo razoável e com respeito às partes. Nesse quesito, não há acordo na greve por causa de interesses antagônicos e contrários de classes presentes nas negociações com o governo que advém das contradições econômicas, políticas e sociais, resultado da contradição entre produção e apropriação privada da riqueza socialmente produzida, aspecto que é ocultado pela ideologia dominante no atual governo, nos meios de comunicação, nas escolas, nas empresas.
A ideologia dominante opera de modo a pegar um aspecto da realidade e universalizá-lo como sendo problemas de todos. Isso acontece no caso das pautas de determinadas classes ou grupos sociais quando querem que outras classes se unam aos seus interesses. A corrupção, por exemplo, que efetivamente é um problema social, político e econômico, foi alçada como problema central da sociedade pelas “classes médias” e parte das classes dominantes, mas reproduzida pela maior parte da classe trabalhadora como sua bandeira. No entanto, não é em si o principal problema da classe trabalhadora, cuja reprodução social está dificultada por causa do regime de acumulação despótico de capital que gera aumento do custo de vida e baixos salários, e que acaba reproduzindo esse discurso como sendo seu pela dificuldade de produzir um discurso próprio a partir de seus problemas reais de vida pelas dificuldades de se constituir como classe na batalha política e ideológica por seus interesses econômicos.
Por isso, a greve dos caminhoneiros tem sido alvo de disputas ideológicas ou de discursos sobre a realidade que partem de representações sociais, que precisam ser compreendidas nessa conjuntura política, econômica e social complexa, mas sem perder as condições materiais do processo de trabalho e de valorização do capital e sua estrutura de classes. A dificuldade talvez se dê pela ausência de um programa político e de um projeto de sociedade que articule os diversos setores produtivos e de transporte para resolver o impasse da crise dos combustíveis, levando sempre às medidas paliativas como redução de impostos ou congelamento do preço. No entanto, a dificuldade maior tem sido o reconhecimento dos interesses de classe, pois o fenômeno das classes sociais é o mais complexo e de difícil compreensão neste tipo de sociedade, já que a divisão técnica e social do trabalho, a heterogeneidade dos tipos de assalariamento e a ausência de organização sindical e política dificultam a compreensão dos trabalhadores enquanto uma classe social. Há quatro elementos fundamentais para se entender classes no Brasil a partir do marxismo: 1º) posição dos indivíduos no processo produtivo (proprietário de meios de produção – patrão, e não proprietários – assalariados); 2º) relações entre as classes no processo de valorização do capital (disputas pelo aumento de seus rendimentos – lucro e salário); 3º) a luta política das classes com relação aos seus interesses econômicos e alianças de classes (através de leis e regimes políticos); e 4º) condições espaciais de vida na cidade e no campo (moradia, localização e deslocamento), o que nos leva a discutir o ponto nodal da atual crise.
Urbanização rodoviarista, segregação urbana e Petrobrás: o ponto nodal da crise
A greve dos caminhoneiros vem mostrando um problema que há décadas faz parte da vida social brasileira: as consequências de um desenvolvimento dependente, desigual e combinado alicerçado na industrialização automotiva e urbanização rodoviarista, cujo ponto nodal dessa relação tem sido a cadeia produtiva do petróleo e da produção automotiva nacional e internacional. O tripé dessa relação entre indústria petroleira e indústria automotiva nesse modelo de “desenvolvimento” tem sido articulado pela indústria da construção civil, pouco destacada pela chamada esquerda institucional e revolucionária que não disputa os sindicatos de trabalhadores dessa categoria, e condições de superexploração dos trabalhadores totalmente negligenciada pela direita conservadora. A categoria dos caminhoneiros também não é disputada politicamente devida sua heterogeneidade, o que mostra a dificuldade de entendimento da atual greve. Por sua vez, a cadeia da construção civil está ligada ao setor imobiliário, que detém o poder de produção de cidades e metrópoles, bem como de infraestrutura urbana e rodoviária para a circulação de mercadorias. Mas ela apresenta um elemento fundamental apresentado por Lefebvre e aprofundado por outros teóricos: o de impedir ou barrar a tendência de queda da taxa de lucro em outros setores da indústria mais dinâmicos e contraditórios, ao ser o enlace atual entre setores imobiliário e financeiro numa economia política da urbanização baseada na extração de mais-valia absoluta.
Por isso, analisar o processo de urbanização é fundamental para entender sua importância para o desenvolvimento capitalista e a superação de suas crises, ao compreender por que a greve dos caminhoneiros ganhou a força de parar o país, enquanto que outras categorias de trabalhadores da indústria não conseguem mais fazê-lo. A urbanização brasileira tem sido um processo induzido pela produção capitalista do espaço, ao passo que o espaço urbano de metrópoles e cidades grandes no Brasil apresenta visualmente os efeitos das desigualdades estruturais deste tipo de capitalismo dependente. A luta de classe se lê no espaço urbano produzido, espaço que precisa ser “objeto” de discussão ampla da esquerda institucional e revolucionária, que não investiga na realidade a relação entre o tripé contraditório apresentado por Marx: terra, trabalho e capital, pressuposto de análise do modo de produção e desenvolvimento da sociedade capitalista, aprofundados apenas por teóricos marxistas da cidade.
As consequências desse tipo de desenvolvimento são visíveis e se manifestam por meio da segregação urbana, entendido aqui como processo social em que as classes que dominam a sociedade (industriais, ruralistas, banqueiros, proprietários de terras) habitam e trabalham numa área da metrópole ou da cidade produzida exclusivamente para elas, enquanto que as demais classes sociais habitam um lugar e trabalham em outro, numa segregação que se efetiva com o sistema viário e de transporte produzido para a reprodução social dessas classes, condição estrutural que indica a necessidade de deslocamentos diários de trabalhadores, pequenos burgueses, profissionais liberais e camadas médias, mas também das mercadorias produzidas. As causas e determinações sociais do deslocamento diário de milhões de trabalhadores se encontram na relação entre segregação urbana, renda da terra e modais de transportes, o que pode evidenciar os fundamentos da mobilidade urbana originado na contradição deste tipo de urbanização, mas também o modelo de dependência do petróleo como combustível.
Essa urbanização tem um caráter rodoviarista desde os governos de Juscelino Kubitschek (1956-1961), que priorizou a urbanização rodoviária articulada a produção automotiva, promoveu a parceria com as montadoras estrangeiras e transnacionais que se instalaram no país para o “desenvolvimento” nacional. No entanto, foi necessário criar a ideologia do “carro próprio” entre as classes médias e trabalhadoras, para viabilizar esse projeto político-econômico, o quê gerou consequências e problemas para a vida urbana metrópoles e cidades médias do país no final do século XX e início do século XXI. Nesse sentido, a ideologia do carro próprio, oriundo da classe média brasileira, nos últimos anos se expandiu para parte da classe trabalhadora, que assumiu esse modo de vida baseado no carro articulado ao sonho da casa própria também, em decorrência dos limites, precariedades e alto custo do transporte público, o que provocou a produção de cidades e metrópoles calcadas na urbanização rodoviarista.
Eduardo Vasconcellos analisou com profundidade a história da “questão do trânsito” em São Paulo, por exemplo, ao contribuir para se pensar o predomínio do modelo rodoviarista e a ideologia do carro próprio que fundamentam a sociedade de classes que vivemos. Para Vasconcellos, o resultado da discussão pública, na década de 1950, entre o ex-prefeito de São Paulo Prestes Maia, defensor do modelo de mobilidade americano, e o urbanista Anhaia Mello, que defendia a ampliação do transporte coletivo, pode explicar a origem do caos viário que se tornou a cidade de São Paulo, mas também as metrópoles brasileiras e sistemas viários na atualidade. O caos instaurado no trânsito só é possível por causa da força produtiva produzida pela infraestrutura urbana de ruas, avenidas, rodovias, pontes e viadutos, enquanto que o transporte coletivo e público não recebeu a mesma prioridade ao longo de décadas, ao desencadear uma crise urbana que explodiu com a revolta da tarifa em 2013 e volta a explodir com a greve dos caminhoneiros em 2018 no país.
A engrenagem da produção automobilística, dos viários e da “cultura” do “carro próprio” só pode ser compreendida no contexto de industrialização e urbanização, ao passo que as duas grandes guerras mundiais aceleraram a industrialização e as grandes aglomerações nos centros urbanos que, mediante a dependência do uso do petróleo até para a construção de asfalto e muitos gêneros de mercadorias, torna-se possível entende as determinações externas para os estímulos dessas políticas econômicas e para quais classes elas visam favorecer: a classe dos capitalistas industriais (montadoras), construtoras (sistema viário), combustível fóssil (petrolíferas e distribuidoras), o agronegócio (ruralistas) e classes médias e pequena burguesia consumidoras de carro. Nessa “engrenagem” da produção de automóveis e urbanização viária da cidade e metrópole, foi necessária a criação da ideologia da circulação e a construção do imaginário de ascensão social baseadas no carro, que negligenciou os problemas urbanos de deslocamento da relação entre moradia e trabalho e a segregação urbana.
Um dos estudiosos dessa questão no Brasil tem sido o urbanista Flávio Villaça, que aprofundou a problemática da segregação urbana e dos vetores de valorização ao explicitar que: “Daí decorre a importância da segregação na análise do espaço urbano de nossa metrópole, pois a segregação é a mais importante manifestação espacial-urbana da desigualdade que impera em nossa sociedade. […]”. Ele analisou ainda que os vetores de valorização nas diversas metrópoles brasileiras convergem para uma direção: a localização das classes dominantes na metrópole. No caso de São Paulo, essa localização está bem delimitada: o quadrante sudoeste da cidade, que abriga as classes dominantes da cidade, mas também da metrópole e parte do país.
Por isso, a greve dos caminhoneiros anuncia uma crise estrutural que precisa ser compreendida em relação dialética e contraditória com o problema conjuntural dos preços dos combustíveis, e mostra também que o capitalismo produz seus próprios coveiros, tal como indicado por Marx. A política de preços da Petrobrás, indexada a flutuação diária do dólar e do mercado internacional de barril de petróleo, expõe o problema de soberania nacional ao favorecer apenas acionistas da Petrobrás, enquanto que desfavorece caminhoneiros e trabalhadores, possuidores de caminhões, automóveis, motocicletas e outros tipos de veículos motorizados. O atual presidente da Petrobrás, Pedro Parente, adotou uma política de preços para favorecer os acionistas e ajudar as petroleiras internacionais a entrarem no mercado brasileiro, como uma das diretrizes do golpe de 2016 na tentativa de entregar o pré-sal às empresas estrangeiras e imperialistas.
Brasília – Caminhoneiros protestam na BR 040, nas proximidades da cidade de Valparaíso de Goiás (Marcelo Camargo/Agência Brasil)
Para onde vai a greve dos caminhoneiros e a luta da classe trabalhadora?
A greve dos caminhoneiros autônomos tem mostrado ao povo brasileiro que não basta apenas diminuir impostos (como reivindicado pelo patronato), pois essa medida tem efeito momentâneo e não resolve o problema da flutuação dos preços no mercado externo. Com a política monetarista de inflação baixa, mas de altos custos públicos e sociais, as consequências dessa política de preços dos combustíveis mostram que o preço atrelado às variações diárias do barril do petróleo internacional expõe o aumento dos custos de vida (transporte, alimentos, e outros) não só para os caminhoneiros, mas para o conjunto da população brasileira, além de expor a maior empresa brasileira que é estatal, a Petrobrás, ao retirar subsídios e tornar quase um terço das refinarias ociosas para abrir espaço para as companhias de petróleo imperialistas, obrigando o país a importar derivados de petróleo por causa do real desvalorizado. Essa política representa um desastre e é contra ela que aparentemente se insurgiu atual greve.
A greve dos caminhoneiros tem caminhado para uma mobilização da classe trabalhadora e de outros segmentos da população no sentido de criar uma relação de solidariedade com essa luta, a exemplo de produtores de leite e alimentos que, diante da possibilidade de perda do produto, doaram para trabalhadores e desempregados, numa forma de apoio a greve que tem sacudido o país nessa semana que cada vez mais vai ampliando a pauta contra a política do atual governo, apesar de haver segmentos da direita disputando com sua pauta de intervenção militar. Ela mostrou também a importância dos trabalhadores do setor de transporte, que precisam ser compreendidos nas complexas relações de classes sociais no atual modo de produção no país, e de que a luta política dos trabalhadores precisa ocorrer de baixo para cima na atual conjuntura para inverter as estruturas institucionais viciadas na hierarquia de cima para baixo. Em síntese, a luta se dá pela base e a partir da base e, evidentemente, exige organização, projeto político e alianças para os enfrentamentos. Por isso, é necessário partir das condições de trabalho presentes no processo produtivo e de circulação, e não das representações sociais que circulam em redes sociais e na mídia burguesa hegemônica.
Por fim, a greve dos caminhoneiros tende a conseguir importantes aliados nessa luta com a greve dos petroleiros, já anunciada pela Frente Única dos Petroleiros (FUP) ao dizer que “a atual política de reajuste dos derivados do petróleo, que fez os preços dos combustíveis dispararem, é reflexo direto do maior desmonte da história da Petrobrás”, e que realizou paralizações nessa segunda 28 de maio. Eles denunciam ainda que “o número de importadoras de derivados quadruplicou nos últimos dois anos, desde que Parente adotou preços internacionais, onerando o consumidor brasileiro para garantir o lucro do mercado. Em 2017, o Brasil foi inundado com mais de 200 milhões de barris de combustíveis importados, enquanto que as refinarias, por deliberação do governo Temer, estão operando com menos de 70% de sua capacidade. O povo brasileiro não pagará a conta desse desmonte”, conclui a nota da FUP. De uma mobilização pela queda dos preços de combustíveis e derivados, a luta dos caminhoneiros está sendo o estopim de uma luta em defesa da Petrobrás e por uma política econômica soberana e voltada para a classe trabalhadora e povo brasileiro, abrindo mais uma janela histórica de transformação que precisa ser aproveitada pelas organizações de esquerda comprometidas com os trabalhadores do campo e da cidade.
Sandro Barbosa de Oliveira é cientista social, professor e educador popular. Bacharel em Ciências Sociais pelo Centro Univ. Fundação Santo André, mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Paulo e doutorando em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas. É também associado da Usina Centro de Trabalhos para o Ambiente Habitado e militante da Frente Itaquera Sem Medo.
O primeiro aspecto a ser compreendido é que a greve dos caminhoneiros foi organizada pelo segmento dos caminhoneiros autônomos, muitos proprietários de seus caminhões, que representam cerca de 70% da categoria dos caminhoneiros. Com a paralisação iniciada dia 21, esse segmentou contou com o apoio dos demais 30% representados por empresas do setor de transporte e logística, que foi exatamente o semento do setor ouvido na negociação com o desgoverno golpista no dia 23, mas com propostas recusadas na reunião do dia 24. O segmento dos empresários de transporte foi representado pela Associação Brasileira dos Caminhoneiros (Abcam), que reúne cerca de 700 mil caminhoneiros e conta com o apoio de 600 sindicados espalhados no Brasil. Esse segmento reivindicou a retirada de impostos como PIS, Cofins e da CIDE que estão embutidos no preço do combustível, enquanto que o segmento dos caminhoneiros autônomos questionam os preços a partir de outro problema mais profundo: a indexação dos preços dos combustíveis à flutuação do dólar e do mercado internacional.
Desde outubro de 2016, quando o governo implementou a política de indexação do preço dos combustíveis da Petrobrás ao dólar e mercado externo, tirando a autonomia da maior empresa brasileira nesse setor para favorecer os seus acionistas e colocando em questão a soberania do país, que as condições de toda a categoria de caminhoneiros só vem piorando e se precarizando ainda mais. A categoria reúne cerca de 2,3 milhões de caminhoneiros em todo o país e mostrou com essa greve que é possível parar a produção e a reprodução da economia parando a circulação das mercadorias. A greve, que tem sido chamada de paralização pela mídia burguesa, já foi vitoriosa por inverter e virar do avesso os problemas da política econômica de um país desgovernado desde 2016, que cujo pacto conservador para o golpe vem apenas tirando direitos dos trabalhadores através da contra-reforma trabalhista e da PEC 51 que congela investimentos públicos, para manter o pagamento da divida pública oriunda dos títulos do tesouro nacional ofertados a juros exorbitantes no mercado de ações.
Para compreender algumas das contradições instauradas com a greve dos caminhoneiros, pretendo problematizar a disputa ideológica sobre ela, a urbanização rodoviarista e o debate oculto das classes sociais nesse processo.
Disputas ideológicas nos discursos sobre a greve e as classes sociais
Como analisou o historiador E.P. Thompson: “classe e consciência de classe são sempre o último e não o primeiro degrau de um processo histórico real”. Então, a consciência de classe dos trabalhadores só pode advir de sua luta política direta contra os interesses do grande capital, e ela não se dá antes da luta concreta e real na produção, muito menos por uma “consciência” filosófica, sociológica ou mesmo representação da realidade social. Com efeito, o que pudemos verificar nessa primeira semana de greve foi uma confusão e desinformação a respeito da greve dos caminhoneiros no Brasil, tanto por parte da esquerda institucional como pela direita conservadora.
A confusão inicial, presente nas chamadas redes sociais, iniciou sob o argumento de que a greve seria uma espécie de locaute (lock out, em inglês) proibido por lei, que é quando empresários e proprietários de caminhões obrigam os trabalhadores pararem para prejudicar a economia e derrubar o governo. Há algo de estranho nesse argumento reproduzido também pela mídia burguesa capitalista, pois nenhum empresário faria isso explicitamente no Brasil, até porque sua maioria apoiou o golpe parlamentar de 2016 que instaurou o atual governo. O que a presença dos empresários da Abcam na reunião com o governo mostra é que esse segmento defende a redução de impostos, mas não questiona a política de preços da Petrobrás. O que essas negociações têm ocultado é que a greve foi de iniciativa dos caminhoneiros autônomos, que continuaram parados mesmo depois do governo anunciar um acordo para acalmar os ânimos dos meios de comunicação e não alardear a sociedade. No entanto, a categoria dos caminhoneiros é heterogênea e complexa para ser vista apenas pela aparente unidade política nessa greve, o que requer estudos mais aprofundados de sua composição.
Da parte da direita conservadora há uma disputa pelo discurso ideológico sobre a greve, pois pegam carona na luta dos caminhoneiros e tentam levar suas pautas de redução de impostos, de intervenção militar e de conservadorismo de seus privilégios de classe num momento de crise econômica e política escancarada, mas não questionam a política monetária e neoliberal do atual governo que ela ajudou no golpe.
A luta política dos caminhoneiros autônomos adquiriu apoio da maior parte da população brasileira, sobretudo, da classe trabalhadora, por causa do que representam para o país e pelas condições de precariedade que estão submetidos, a exemplo de outras categorias de trabalhadores que agonizam com o aumento do custo de vida, o desemprego e sentem concretamente as consequências da farsa do golpe parlamentar de 2016. A greve conta com apoio importante do setor dos Petroleiros, da Frente Brasil Popular e da Frente Povo Sem Medo, e o que ela evidencia são as condições de trabalho desses caminhoneiros, que só têm sido noticiadas nas redes sociais e mídias alternativas por causa dessa greve, ao mostrar uma realidade desconhecida pela maioria dos brasileiros: jornadas de trabalho que chegam a 24 horas diretas; em média 19 dias de trabalho longe da família; os caminhoneiros rodam cerca de 10 mil quilômetros por todo o Brasil nesses dias de trabalho; há assalariamento entre os caminhoneiros proprietários de mais de um caminhão; e eles recebem em média R$ 4 mil reais de salário ou renda, comprometida agora com o alto custo dos combustíveis e as dificuldades de negociar o frete ante flutuação dos preços e manutenção de caminhões. Entretanto, não se mostra as condições econômicas de empresas e de proprietários de vários caminhões entre os caminhoneiros autônomos, dada sua heterogeneidade e complexidade.
No entanto, as representações sociais sobre a greve dos caminhoneiros produzida pela mídia burguesa, quando tenta ludibriar os trabalhadores mentindo descaradamente sobre a circulação de medicamentos, e por certos agentes ao reproduzir o argumento de locaute e focar sua crítica apenas nas faixas de intervenção militar que parte dos caminhoneiros expõe, mostram a complexidade da categoria, da greve e das classes sociais, mas também como as representações sobre um determinado fenômeno social precisam ser reconhecidas e superadas. O sociólogo e filósofo Henri Lefebvre analisou que a representação está ligada filosoficamente ao conhecimento, porém, há uma dimensão que é de desconhecimento. Ele destacou que há uma cisão entre ser e saber que precisa ser superada, ao questionar a ideologia nos processos de representação da realidade, e expor que o tempo de trabalho abstrato socialmente necessário apagou os trabalhadores e o trabalho no processo de conhecimento, o que tem dificultado na apreensão do movimento real e apenas uma compreensão da representação da realidade. Em síntese, as pessoas tendem entender o real a partir das representações sobre a realidade e não a partir da própria realidade mediada pela teoria ou representação. Isso se verifica no fenômeno das redes sociais e na amálgama de informações e desinformações que circulam nessas redes. O aspecto mais palpável desse problema é o da chamada Fake News (notícia falsa), que não é exclusivo das redes sociais, mas que está presente e cuja origem vem de organizações como o MBL, Movimento Vem Pra Rua e outras, que disseminam notícias falsas sobre a realidade econômica e política.
Todavia, são as condições de precarização do trabalho e aumento do custo de vida, oriundos das políticas de ajuste fiscal e corte de investimento da atual política, que levam determinadas categorias a fazer greves e paralizações. A greve sempre é o último ato de quem não conseguiu chegar num acordo razoável e com respeito às partes. Nesse quesito, não há acordo na greve por causa de interesses antagônicos e contrários de classes presentes nas negociações com o governo que advém das contradições econômicas, políticas e sociais, resultado da contradição entre produção e apropriação privada da riqueza socialmente produzida, aspecto que é ocultado pela ideologia dominante no atual governo, nos meios de comunicação, nas escolas, nas empresas.
A ideologia dominante opera de modo a pegar um aspecto da realidade e universalizá-lo como sendo problemas de todos. Isso acontece no caso das pautas de determinadas classes ou grupos sociais quando querem que outras classes se unam aos seus interesses. A corrupção, por exemplo, que efetivamente é um problema social, político e econômico, foi alçada como problema central da sociedade pelas “classes médias” e parte das classes dominantes, mas reproduzida pela maior parte da classe trabalhadora como sua bandeira. No entanto, não é em si o principal problema da classe trabalhadora, cuja reprodução social está dificultada por causa do regime de acumulação despótico de capital que gera aumento do custo de vida e baixos salários, e que acaba reproduzindo esse discurso como sendo seu pela dificuldade de produzir um discurso próprio a partir de seus problemas reais de vida pelas dificuldades de se constituir como classe na batalha política e ideológica por seus interesses econômicos.
Por isso, a greve dos caminhoneiros tem sido alvo de disputas ideológicas ou de discursos sobre a realidade que partem de representações sociais, que precisam ser compreendidas nessa conjuntura política, econômica e social complexa, mas sem perder as condições materiais do processo de trabalho e de valorização do capital e sua estrutura de classes. A dificuldade talvez se dê pela ausência de um programa político e de um projeto de sociedade que articule os diversos setores produtivos e de transporte para resolver o impasse da crise dos combustíveis, levando sempre às medidas paliativas como redução de impostos ou congelamento do preço. No entanto, a dificuldade maior tem sido o reconhecimento dos interesses de classe, pois o fenômeno das classes sociais é o mais complexo e de difícil compreensão neste tipo de sociedade, já que a divisão técnica e social do trabalho, a heterogeneidade dos tipos de assalariamento e a ausência de organização sindical e política dificultam a compreensão dos trabalhadores enquanto uma classe social. Há quatro elementos fundamentais para se entender classes no Brasil a partir do marxismo: 1º) posição dos indivíduos no processo produtivo (proprietário de meios de produção – patrão, e não proprietários – assalariados); 2º) relações entre as classes no processo de valorização do capital (disputas pelo aumento de seus rendimentos – lucro e salário); 3º) a luta política das classes com relação aos seus interesses econômicos e alianças de classes (através de leis e regimes políticos); e 4º) condições espaciais de vida na cidade e no campo (moradia, localização e deslocamento), o que nos leva a discutir o ponto nodal da atual crise.
Urbanização rodoviarista, segregação urbana e Petrobrás: o ponto nodal da crise
A greve dos caminhoneiros vem mostrando um problema que há décadas faz parte da vida social brasileira: as consequências de um desenvolvimento dependente, desigual e combinado alicerçado na industrialização automotiva e urbanização rodoviarista, cujo ponto nodal dessa relação tem sido a cadeia produtiva do petróleo e da produção automotiva nacional e internacional. O tripé dessa relação entre indústria petroleira e indústria automotiva nesse modelo de “desenvolvimento” tem sido articulado pela indústria da construção civil, pouco destacada pela chamada esquerda institucional e revolucionária que não disputa os sindicatos de trabalhadores dessa categoria, e condições de superexploração dos trabalhadores totalmente negligenciada pela direita conservadora. A categoria dos caminhoneiros também não é disputada politicamente devida sua heterogeneidade, o que mostra a dificuldade de entendimento da atual greve. Por sua vez, a cadeia da construção civil está ligada ao setor imobiliário, que detém o poder de produção de cidades e metrópoles, bem como de infraestrutura urbana e rodoviária para a circulação de mercadorias. Mas ela apresenta um elemento fundamental apresentado por Lefebvre e aprofundado por outros teóricos: o de impedir ou barrar a tendência de queda da taxa de lucro em outros setores da indústria mais dinâmicos e contraditórios, ao ser o enlace atual entre setores imobiliário e financeiro numa economia política da urbanização baseada na extração de mais-valia absoluta.
Por isso, analisar o processo de urbanização é fundamental para entender sua importância para o desenvolvimento capitalista e a superação de suas crises, ao compreender por que a greve dos caminhoneiros ganhou a força de parar o país, enquanto que outras categorias de trabalhadores da indústria não conseguem mais fazê-lo. A urbanização brasileira tem sido um processo induzido pela produção capitalista do espaço, ao passo que o espaço urbano de metrópoles e cidades grandes no Brasil apresenta visualmente os efeitos das desigualdades estruturais deste tipo de capitalismo dependente. A luta de classe se lê no espaço urbano produzido, espaço que precisa ser “objeto” de discussão ampla da esquerda institucional e revolucionária, que não investiga na realidade a relação entre o tripé contraditório apresentado por Marx: terra, trabalho e capital, pressuposto de análise do modo de produção e desenvolvimento da sociedade capitalista, aprofundados apenas por teóricos marxistas da cidade.
As consequências desse tipo de desenvolvimento são visíveis e se manifestam por meio da segregação urbana, entendido aqui como processo social em que as classes que dominam a sociedade (industriais, ruralistas, banqueiros, proprietários de terras) habitam e trabalham numa área da metrópole ou da cidade produzida exclusivamente para elas, enquanto que as demais classes sociais habitam um lugar e trabalham em outro, numa segregação que se efetiva com o sistema viário e de transporte produzido para a reprodução social dessas classes, condição estrutural que indica a necessidade de deslocamentos diários de trabalhadores, pequenos burgueses, profissionais liberais e camadas médias, mas também das mercadorias produzidas. As causas e determinações sociais do deslocamento diário de milhões de trabalhadores se encontram na relação entre segregação urbana, renda da terra e modais de transportes, o que pode evidenciar os fundamentos da mobilidade urbana originado na contradição deste tipo de urbanização, mas também o modelo de dependência do petróleo como combustível.
Essa urbanização tem um caráter rodoviarista desde os governos de Juscelino Kubitschek (1956-1961), que priorizou a urbanização rodoviária articulada a produção automotiva, promoveu a parceria com as montadoras estrangeiras e transnacionais que se instalaram no país para o “desenvolvimento” nacional. No entanto, foi necessário criar a ideologia do “carro próprio” entre as classes médias e trabalhadoras, para viabilizar esse projeto político-econômico, o quê gerou consequências e problemas para a vida urbana metrópoles e cidades médias do país no final do século XX e início do século XXI. Nesse sentido, a ideologia do carro próprio, oriundo da classe média brasileira, nos últimos anos se expandiu para parte da classe trabalhadora, que assumiu esse modo de vida baseado no carro articulado ao sonho da casa própria também, em decorrência dos limites, precariedades e alto custo do transporte público, o que provocou a produção de cidades e metrópoles calcadas na urbanização rodoviarista.
Eduardo Vasconcellos analisou com profundidade a história da “questão do trânsito” em São Paulo, por exemplo, ao contribuir para se pensar o predomínio do modelo rodoviarista e a ideologia do carro próprio que fundamentam a sociedade de classes que vivemos. Para Vasconcellos, o resultado da discussão pública, na década de 1950, entre o ex-prefeito de São Paulo Prestes Maia, defensor do modelo de mobilidade americano, e o urbanista Anhaia Mello, que defendia a ampliação do transporte coletivo, pode explicar a origem do caos viário que se tornou a cidade de São Paulo, mas também as metrópoles brasileiras e sistemas viários na atualidade. O caos instaurado no trânsito só é possível por causa da força produtiva produzida pela infraestrutura urbana de ruas, avenidas, rodovias, pontes e viadutos, enquanto que o transporte coletivo e público não recebeu a mesma prioridade ao longo de décadas, ao desencadear uma crise urbana que explodiu com a revolta da tarifa em 2013 e volta a explodir com a greve dos caminhoneiros em 2018 no país.
A engrenagem da produção automobilística, dos viários e da “cultura” do “carro próprio” só pode ser compreendida no contexto de industrialização e urbanização, ao passo que as duas grandes guerras mundiais aceleraram a industrialização e as grandes aglomerações nos centros urbanos que, mediante a dependência do uso do petróleo até para a construção de asfalto e muitos gêneros de mercadorias, torna-se possível entende as determinações externas para os estímulos dessas políticas econômicas e para quais classes elas visam favorecer: a classe dos capitalistas industriais (montadoras), construtoras (sistema viário), combustível fóssil (petrolíferas e distribuidoras), o agronegócio (ruralistas) e classes médias e pequena burguesia consumidoras de carro. Nessa “engrenagem” da produção de automóveis e urbanização viária da cidade e metrópole, foi necessária a criação da ideologia da circulação e a construção do imaginário de ascensão social baseadas no carro, que negligenciou os problemas urbanos de deslocamento da relação entre moradia e trabalho e a segregação urbana.
Um dos estudiosos dessa questão no Brasil tem sido o urbanista Flávio Villaça, que aprofundou a problemática da segregação urbana e dos vetores de valorização ao explicitar que: “Daí decorre a importância da segregação na análise do espaço urbano de nossa metrópole, pois a segregação é a mais importante manifestação espacial-urbana da desigualdade que impera em nossa sociedade. […]”. Ele analisou ainda que os vetores de valorização nas diversas metrópoles brasileiras convergem para uma direção: a localização das classes dominantes na metrópole. No caso de São Paulo, essa localização está bem delimitada: o quadrante sudoeste da cidade, que abriga as classes dominantes da cidade, mas também da metrópole e parte do país.
Por isso, a greve dos caminhoneiros anuncia uma crise estrutural que precisa ser compreendida em relação dialética e contraditória com o problema conjuntural dos preços dos combustíveis, e mostra também que o capitalismo produz seus próprios coveiros, tal como indicado por Marx. A política de preços da Petrobrás, indexada a flutuação diária do dólar e do mercado internacional de barril de petróleo, expõe o problema de soberania nacional ao favorecer apenas acionistas da Petrobrás, enquanto que desfavorece caminhoneiros e trabalhadores, possuidores de caminhões, automóveis, motocicletas e outros tipos de veículos motorizados. O atual presidente da Petrobrás, Pedro Parente, adotou uma política de preços para favorecer os acionistas e ajudar as petroleiras internacionais a entrarem no mercado brasileiro, como uma das diretrizes do golpe de 2016 na tentativa de entregar o pré-sal às empresas estrangeiras e imperialistas.
Brasília – Caminhoneiros protestam na BR 040, nas proximidades da cidade de Valparaíso de Goiás (Marcelo Camargo/Agência Brasil)
Para onde vai a greve dos caminhoneiros e a luta da classe trabalhadora?
A greve dos caminhoneiros autônomos tem mostrado ao povo brasileiro que não basta apenas diminuir impostos (como reivindicado pelo patronato), pois essa medida tem efeito momentâneo e não resolve o problema da flutuação dos preços no mercado externo. Com a política monetarista de inflação baixa, mas de altos custos públicos e sociais, as consequências dessa política de preços dos combustíveis mostram que o preço atrelado às variações diárias do barril do petróleo internacional expõe o aumento dos custos de vida (transporte, alimentos, e outros) não só para os caminhoneiros, mas para o conjunto da população brasileira, além de expor a maior empresa brasileira que é estatal, a Petrobrás, ao retirar subsídios e tornar quase um terço das refinarias ociosas para abrir espaço para as companhias de petróleo imperialistas, obrigando o país a importar derivados de petróleo por causa do real desvalorizado. Essa política representa um desastre e é contra ela que aparentemente se insurgiu atual greve.
A greve dos caminhoneiros tem caminhado para uma mobilização da classe trabalhadora e de outros segmentos da população no sentido de criar uma relação de solidariedade com essa luta, a exemplo de produtores de leite e alimentos que, diante da possibilidade de perda do produto, doaram para trabalhadores e desempregados, numa forma de apoio a greve que tem sacudido o país nessa semana que cada vez mais vai ampliando a pauta contra a política do atual governo, apesar de haver segmentos da direita disputando com sua pauta de intervenção militar. Ela mostrou também a importância dos trabalhadores do setor de transporte, que precisam ser compreendidos nas complexas relações de classes sociais no atual modo de produção no país, e de que a luta política dos trabalhadores precisa ocorrer de baixo para cima na atual conjuntura para inverter as estruturas institucionais viciadas na hierarquia de cima para baixo. Em síntese, a luta se dá pela base e a partir da base e, evidentemente, exige organização, projeto político e alianças para os enfrentamentos. Por isso, é necessário partir das condições de trabalho presentes no processo produtivo e de circulação, e não das representações sociais que circulam em redes sociais e na mídia burguesa hegemônica.
Por fim, a greve dos caminhoneiros tende a conseguir importantes aliados nessa luta com a greve dos petroleiros, já anunciada pela Frente Única dos Petroleiros (FUP) ao dizer que “a atual política de reajuste dos derivados do petróleo, que fez os preços dos combustíveis dispararem, é reflexo direto do maior desmonte da história da Petrobrás”, e que realizou paralizações nessa segunda 28 de maio. Eles denunciam ainda que “o número de importadoras de derivados quadruplicou nos últimos dois anos, desde que Parente adotou preços internacionais, onerando o consumidor brasileiro para garantir o lucro do mercado. Em 2017, o Brasil foi inundado com mais de 200 milhões de barris de combustíveis importados, enquanto que as refinarias, por deliberação do governo Temer, estão operando com menos de 70% de sua capacidade. O povo brasileiro não pagará a conta desse desmonte”, conclui a nota da FUP. De uma mobilização pela queda dos preços de combustíveis e derivados, a luta dos caminhoneiros está sendo o estopim de uma luta em defesa da Petrobrás e por uma política econômica soberana e voltada para a classe trabalhadora e povo brasileiro, abrindo mais uma janela histórica de transformação que precisa ser aproveitada pelas organizações de esquerda comprometidas com os trabalhadores do campo e da cidade.
Sandro Barbosa de Oliveira é cientista social, professor e educador popular. Bacharel em Ciências Sociais pelo Centro Univ. Fundação Santo André, mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Paulo e doutorando em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas. É também associado da Usina Centro de Trabalhos para o Ambiente Habitado e militante da Frente Itaquera Sem Medo.