A greve de caminhoneiros que paralisou o Brasil expôs a falência do governo de Michel Temer e o descrédito da ampla maioria dos brasileiros nas instituições do país. Mas até as eleições de outubro, o Brasil terá de resistir à pressão de uma parcela minoritária da população que aproveita o contexto de tensão social, política e econômica para pedir uma indefensável intervenção militar. Essa avaliação é compartilhada por dois especialistas ouvidos pela RFI nas áreas de direito constitucional e economia do trabalho.



Caminhões do Exército escoltam caminhão-tanque de entrega de combustíveis em rodovia perto de Porto Alegre.REUTERS/Diego Vara

A greve dos caminhoneiros dá sinais de enfraquecimento no 10° dia, mas a paralisação dos petroleiros, a partir de hoje, pode dificultar um retorno à normalidade.

"A incompetência do governo é total", diz Oscar Vilhena Vieira, professor de Direito Constitucional da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo (FGV-SP). Ele considera que Temer foi "inapto" ao não antecipar que a alta nos preços dos combustíveis, gerada pela política da Petrobras de acompanhar a oscilação internacional do barril de petróleo, criaria confronto num setor estratégico para a economia que é o transporte rodoviário de cargas.





Sem entrar no mérito da decisão tomada pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST) de julgar a greve dos petroleiros ilegal, Vilhena aponta uma tendência das cortes superiores de serem permeáveis a uma apreciação política em momentos de crise. "Certamente, o TST deve ter levado em consideração que a paralisação dos petroleiros, na sequência do movimento dos caminhoneiros, agravaria ainda mais a crise de abastecimento", afirma o jurista.

Já o economista José Dari Krein, pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e do Trabalho e professor do Instituto de Economia da Unicamp, critica o posicionamento do TST. "Infelizmente, na minha avaliação, há dois pesos e duas medidas do Judiciário em relação às greves. No caso dos caminhoneiros, há uma certa leniência e a greve conseguiu acontecer, enquanto na greve dos petroleiros, que também tem razões salariais decorrentes da política de gestão da empresa, ela é proibida liminarmente. Vejo claramente um atentado ao direito de greve, uma inibição do direito para alguns setores, e outros não", argumenta o professor da Unicamp.

Segundo Krein, a paralisação dos caminhoneiros ganhou o apoio de 87% dos brasileiros – como revelou uma pesquisa do instituto Datafolha nesta quarta-feira – porque a a população está muito descontente com as orientações políticas que estão sendo conduzidas no país. "Estão descontentes com todas as instituições, do poder Executivo ao Legislativo e Judiciário, que está extremamente desacreditado", constata o economista. Krein nota que o estímulo político à greve não passa pelos partidos tradicionais de direita e de esquerda por eles estarem mais comedidos em suas opiniões. "Os grupos que estimulam essa greve estão fora do jogo político tradicional, como o que defende a intervenção militar", explica.

Na opinião do especialista da Unicamp, a dimensão da greve dos caminhoneiros se explica pela "inexistência" de governo. "A palavra do presidente da República não vale nada na opinião da maioria dos manifestantes", observa Krein. Um indício desse descrédito é o fato de Temer ter publicado no Diário Oficial as garantias de controle de preços do diesel por 60 dias, além da redução de R$ 0,46 por litro, e o acordo não ser considerado algo aceitável. Tanto a instituição da presidência da República quanto os meios de comunicação não contam com a confiança da população, constata. "Ninguém acredita mais em ninguém e isso terá consequências muito fortes para o futuro do país", adverte.




Esgarçamento do tecido social


"O Brasil passa por um enorme processo de estresse, com um esgarçamento do tecido social provocado principalmente a partir do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, em agosto de 2016", situa Vilhena. Mas os sintomas já estavam presentes dois anos antes da destituição da petista, com a guerra travada entre os três poderes da República.

"Vejo com perplexidade e angústia essa espiral de declínio que atingiu o Brasil a partir da eleição de 2014. Foi uma eleição muito polarizada, marcada pelo financiamento ilegal de todos os lados, tanto do PT, que ganhou, como do candidato que foi para o segundo turno [Aécio Neves, do PSDB]. A denúncia de Aécio sendo recebida pelo Supremo Tribunal Federal deixa isso claro atualmente. Tanto o PT quanto o PSDB, que foram as principais forças políticas brasileiras ao longo dos últimos 20 anos, jogaram o jogo de maneira fraudulenta. Foi o início de um processo que impacta até agora a integridade das instituições", avalia Vilhena.

Paralelamente, prossegue o jurista, a operação Lava Jato foi abatendo a legitimidade dos atores políticos, a tal ponto que a sociedade se desencantou da política e surgem, no cenário atual, pessoas pedindo a intervenção das Forças Armadas. "Existe uma ordem constitucional e essa aventura não está na agenda", alerta o constitucionalista.

O Brasil passa por uma tempestade institucional, descreve figurativamente o professor de direito da FGV-SP. "As instituições têm usado suas atribuições para contestar os atos das outras instituições. A relação dos poderes, que deveria ter uma certa harmonia, passou a ser profundamente conflitiva, e na base existem problemas sólidos, robustos, de conflito ideológico, uma polarização criada principalmente a partir do impeachment, em que um lado nega ao outro o direito de ter ideias distintas", destaca o jurista.




Guerra de trincheiras


O momento é crítico, preocupante. "As forças democráticas estão sendo incapazes de construir um diálogo positivo. Estamos precisando que as pessoas abandonem as trincheiras para dialogar e construir uma alternativa, o que não é fácil em ano eleitoral. Mas prefiro acreditar na capacidade de resiliência dos brasileiros e esse é o caminho que devemos seguir", diz o professor da FGV-SP.

Krein, da Unicamp, também só vê uma solução à crise atual: "A adoção de um processo eleitoral legítimo, em que a vontade da maioria da população seja expressada". Ele lamenta que o processo político também esteja desgastado. "O candidato favorito está preso, e os outros candidatos em situação de disputar o segundo turno não conseguem reunir sequer um terço do apoio da população", destaca.

Na opinião do economista, as eleições de outubro são a única forma de se tentar resolver esse impasse, havendo risco de se sair do processo sem uma questão fundamental resolvida.

"A greve dos caminhoneiros mostrou que o discurso liberal, de que o mercado seja o agente organizador da vida econômica do país, é um discurso que não tem o apoio da população. A política da Petrobras e outras políticas que o mercado defende como solução não têm o respaldo da sociedade", conclui Krein.


RFI


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