Companhia de teatro e moradores do bairro sofreram nas últimas semanas duas grandes investidas. Após o parecer do Iphan favorável à construção das torres do grupo Sílvio Santos, o vereador Fernando Holiday barrou na quarta-feira à votação do Projeto Parque do Bixiga, sob alegações moralistas e em defesa da propriedade privada
por Taís Ilhéu
Imagem por Jennifer Glass
Eu sou o Teatro Brasileiro
Da vida o espelho verdadeiro…
A formação é, no mínimo, singular: entre membros do Oficina, moradores e outros representantes do Bixiga, Zé Celso é um ponto esfuziante no centro da sala abarrotada. Puxando o coro, ele dança ao redor do vereador, que assiste à cena desconcertado.
Sambando neste carnaval
Com a minha arte que é imortal
Depois de barrar na tarde dessa quarta-feira a votação do projeto de lei 805/2017, conhecido como Projeto do Parque do Bixiga, o vereador Fernando Holiday, um dos expoentes do Movimento Brasil Livre (MBL), recebeu o grupo em seu gabinete.
Durante a conversa, a cada momento o argumento que melhor lhe cabia. Ora tratava o potencial Parque do Bixiga como cena do Teatro Oficina e, veja bem, “não cabe ao Estado reconhecer nenhum tipo de cultura”. O projeto, então, não poderia passar, pois seria uma “chancela” ao grupo de Zé Celso. Ora, voltava a recorrer aos argumentos em defesa da propriedade privada, afirmando que a situação das torres do grupo Sílvio Santos não é isolada e deve se tornar emblemática em relação à propriedade privada, para que se replique em quadros parecidos no restante do Brasil.
O confuso balaio em que Fernando Holiday coloca Teatro Oficina, Parque do Bixiga e Torres do Silvio Santos não é, na verdade, nada incomum nos debates e cobertura da imprensa a respeito do caso. Ou melhor, dos casos.
A autorização que o grupo Silvio Santos busca para construir dois prédios nos terrenos circundantes ao Oficina e o Projeto do Parque do Bixiga (805/2017), de autoria do vereador Gilberto Natalini (PV), são duas propostas que correm paralelamente, a primeira no executivo e a segunda no legislativo. Embora lutem pelo mesmo espaço, a associação de que o parque é uma tentativa de barrar a construção das torres é rasa. E pode ser especialmente danosa à tentativa de aprovação se colocada como única razão de ser do projeto, desconsiderando os benefícios que a implementação deste traria ao Bixiga — o bairro conta, assim como todo o centro da capital paulista, com um dos menores índices de área verde por habitante de São Paulo — e, para além do Oficina, é uma demanda dos moradores e de outras entidades de destaque da região como a escola de samba Vai Vai e centros religiosos, como os terreiros de candomblé e as igrejas católicas.
Apesar do caso ter ganho maior notoriedade do ano passado para cá, a ideia de uma área verde ao redor do Oficina, assim como a luta travada com o grupo Silvio Santos, não é recente. A arquiteta que projetou o Teatro, Lina Bo Bardi, já a previa, nomeando essa região circundante de Anhangabaú da Felicidade. Faleceu em 1992, sem ver o plano do parque executado. O Oficina já vinha há alguns anos tentando colocar o projeto em prática por outras vias, como pela Secretaria Municipal de Cultura, mas apenas no ano passado começou a correr no legislativo como de fato um Projeto de Lei. Apesar das mudanças em vias burocráticas, de Anhangabaú da Felicidade para Parque do Bixiga, a essência do espaço seria a mesma: muito distante de um Ibirapuera, a ideia é que este seja um parque voltado à produção de arte e à cultura.
Não se sabe quando o projeto voltará a ser votado, e muito menos como se dará a discussão em torno de sua aprovação, que em vista da reunião com o vereador do DEM, reunirá discenso e equívocos. “Ele sai da pauta porque ele não tem como se posicionar contra um parque. Ele legisla para o povo, como ele vai negar a construção de um parque público? Então ele decide comprar a questão das torres, em defesa do patrimônio privado”, afirma Marília Gallmeister, arquiteta do Oficina.
Membros do Oficina apresentaram na tarde de hoje recurso na sede do Iphan em São Paulo
Enquanto isso, o projeto de Silvio Santos corre a passos largos. Um grupo do Teatro Oficina foi até a sede do Iphan em São Paulo, na tarde de hoje, entregar o recurso para tentar reverter a decisão do Instituto, que no último dia 25 deu parecer favorável à construção das torres. Para que o grupo SS possa de fato executar a obra, precisa da autorização das três instâncias perante as quais o Teatro Oficina é tombado: o Conpresp, o Condephaat e o Iphan — respectivamente representações municipal, estadual e federal. Com o parecer favorável dos dois últimos (o Condephaat já havia se decidido em outubro do ano passado), agora só resta a decisão em instância municipal.
A justificativa para a aprovação do Iphan é de que a proposta apresentada pela construtora cumpre tecnicamente os requisitos de preservação do entorno, nos moldes em que o Oficina foi tombado: delimita-se um cone visual, a partir de cada lado da parede de vidro que fica no lado oeste da construção, com abertura de 45º e que se estende por 20 metros.
O parecer, embora bastante tecnicista, é, ao ver das arquitetas Marília Gallmeister e Carila Matzenbacher, falho em diversos aspectos. Uma dessas falhas é o fato de ele não ser pensado de uma perspectiva interna e externa: quem está dentro do teatro poderia até conseguir, ainda, visualizar parte da paisagem pelo janelão de vidro, mas a obra arquitetônica de Lina não poderá mais ser contemplada de todas as perspectivas por quem a observa do lado de fora.
Para além desses fatores, a falta de diálogo também incomodou. “O tombamento do Iphan se dá no mérito do bem material e do seu valor histórico. O valor histórico da construção do Teatro Oficina é indissociável da companhia que o fundou e que ainda hoje atua nele, que tem como figura central Zé Celso”, argumenta Marília Gallmeister.
O Iphan declara que é preciso ainda que o projeto seja autorizado por outros órgãos no que tange não só ao tombamento em outras instâncias, mas em relação também às normas urbanísticas e de uso do solo. No mais, afirma que seu parecer se refere estritamente ao tombamento e sua área de entorno e, sendo assim, está tudo dentro do previsto. O Teatro Oficina segue clamando para que se pense fora do cone.
*Taís Ilhéu é jornalista
Le Monde Diplomatique
Da vida o espelho verdadeiro…
A formação é, no mínimo, singular: entre membros do Oficina, moradores e outros representantes do Bixiga, Zé Celso é um ponto esfuziante no centro da sala abarrotada. Puxando o coro, ele dança ao redor do vereador, que assiste à cena desconcertado.
Sambando neste carnaval
Com a minha arte que é imortal
Depois de barrar na tarde dessa quarta-feira a votação do projeto de lei 805/2017, conhecido como Projeto do Parque do Bixiga, o vereador Fernando Holiday, um dos expoentes do Movimento Brasil Livre (MBL), recebeu o grupo em seu gabinete.
Durante a conversa, a cada momento o argumento que melhor lhe cabia. Ora tratava o potencial Parque do Bixiga como cena do Teatro Oficina e, veja bem, “não cabe ao Estado reconhecer nenhum tipo de cultura”. O projeto, então, não poderia passar, pois seria uma “chancela” ao grupo de Zé Celso. Ora, voltava a recorrer aos argumentos em defesa da propriedade privada, afirmando que a situação das torres do grupo Sílvio Santos não é isolada e deve se tornar emblemática em relação à propriedade privada, para que se replique em quadros parecidos no restante do Brasil.
O confuso balaio em que Fernando Holiday coloca Teatro Oficina, Parque do Bixiga e Torres do Silvio Santos não é, na verdade, nada incomum nos debates e cobertura da imprensa a respeito do caso. Ou melhor, dos casos.
A autorização que o grupo Silvio Santos busca para construir dois prédios nos terrenos circundantes ao Oficina e o Projeto do Parque do Bixiga (805/2017), de autoria do vereador Gilberto Natalini (PV), são duas propostas que correm paralelamente, a primeira no executivo e a segunda no legislativo. Embora lutem pelo mesmo espaço, a associação de que o parque é uma tentativa de barrar a construção das torres é rasa. E pode ser especialmente danosa à tentativa de aprovação se colocada como única razão de ser do projeto, desconsiderando os benefícios que a implementação deste traria ao Bixiga — o bairro conta, assim como todo o centro da capital paulista, com um dos menores índices de área verde por habitante de São Paulo — e, para além do Oficina, é uma demanda dos moradores e de outras entidades de destaque da região como a escola de samba Vai Vai e centros religiosos, como os terreiros de candomblé e as igrejas católicas.
Apesar do caso ter ganho maior notoriedade do ano passado para cá, a ideia de uma área verde ao redor do Oficina, assim como a luta travada com o grupo Silvio Santos, não é recente. A arquiteta que projetou o Teatro, Lina Bo Bardi, já a previa, nomeando essa região circundante de Anhangabaú da Felicidade. Faleceu em 1992, sem ver o plano do parque executado. O Oficina já vinha há alguns anos tentando colocar o projeto em prática por outras vias, como pela Secretaria Municipal de Cultura, mas apenas no ano passado começou a correr no legislativo como de fato um Projeto de Lei. Apesar das mudanças em vias burocráticas, de Anhangabaú da Felicidade para Parque do Bixiga, a essência do espaço seria a mesma: muito distante de um Ibirapuera, a ideia é que este seja um parque voltado à produção de arte e à cultura.
Não se sabe quando o projeto voltará a ser votado, e muito menos como se dará a discussão em torno de sua aprovação, que em vista da reunião com o vereador do DEM, reunirá discenso e equívocos. “Ele sai da pauta porque ele não tem como se posicionar contra um parque. Ele legisla para o povo, como ele vai negar a construção de um parque público? Então ele decide comprar a questão das torres, em defesa do patrimônio privado”, afirma Marília Gallmeister, arquiteta do Oficina.
Membros do Oficina apresentaram na tarde de hoje recurso na sede do Iphan em São Paulo
Enquanto isso, o projeto de Silvio Santos corre a passos largos. Um grupo do Teatro Oficina foi até a sede do Iphan em São Paulo, na tarde de hoje, entregar o recurso para tentar reverter a decisão do Instituto, que no último dia 25 deu parecer favorável à construção das torres. Para que o grupo SS possa de fato executar a obra, precisa da autorização das três instâncias perante as quais o Teatro Oficina é tombado: o Conpresp, o Condephaat e o Iphan — respectivamente representações municipal, estadual e federal. Com o parecer favorável dos dois últimos (o Condephaat já havia se decidido em outubro do ano passado), agora só resta a decisão em instância municipal.
A justificativa para a aprovação do Iphan é de que a proposta apresentada pela construtora cumpre tecnicamente os requisitos de preservação do entorno, nos moldes em que o Oficina foi tombado: delimita-se um cone visual, a partir de cada lado da parede de vidro que fica no lado oeste da construção, com abertura de 45º e que se estende por 20 metros.
O parecer, embora bastante tecnicista, é, ao ver das arquitetas Marília Gallmeister e Carila Matzenbacher, falho em diversos aspectos. Uma dessas falhas é o fato de ele não ser pensado de uma perspectiva interna e externa: quem está dentro do teatro poderia até conseguir, ainda, visualizar parte da paisagem pelo janelão de vidro, mas a obra arquitetônica de Lina não poderá mais ser contemplada de todas as perspectivas por quem a observa do lado de fora.
Para além desses fatores, a falta de diálogo também incomodou. “O tombamento do Iphan se dá no mérito do bem material e do seu valor histórico. O valor histórico da construção do Teatro Oficina é indissociável da companhia que o fundou e que ainda hoje atua nele, que tem como figura central Zé Celso”, argumenta Marília Gallmeister.
O Iphan declara que é preciso ainda que o projeto seja autorizado por outros órgãos no que tange não só ao tombamento em outras instâncias, mas em relação também às normas urbanísticas e de uso do solo. No mais, afirma que seu parecer se refere estritamente ao tombamento e sua área de entorno e, sendo assim, está tudo dentro do previsto. O Teatro Oficina segue clamando para que se pense fora do cone.
*Taís Ilhéu é jornalista
Le Monde Diplomatique