Nova resolução faz malabarismo para reduzir pedidos de refúgio, que hoje somam 86 mil. Na prática, solicitantes perderão direitos de proteção internacional.
Natália Cintra, Vinicius Cabral
O Brasil nunca teve um passivo tão expressivo de solicitações de refúgio – atualmente na casa dos 86 mil, segundo dados oficiais. O alto número – a despeito de esconder casos de pessoas que já abandonaram o país, se naturalizaram, morreram etc – representa o histórico desinteresse do governo na política migratória.
Agora, o governo resolveu inovar para escamotear sua própria ineficiência, editando a Resolução Normativa nº 26, do Comitê Nacional para Refugiados, o Conare, de 29 de março de 2018. A resolução estabelece que solicitantes de refúgio que obtenham autorização de residência no Brasil poderão ter seus pedidos de refúgio extintos, sem análise do mérito.
A medida vai diminuir o passivo do Conare a curto prazo: o ex-solicitante de refúgio se regularizará de maneira mais ágil, e o Brasil continuará como referência perante a comunidade internacional no cuidado da população refugiada e imigrante. A priori, não há o que se questionar.
No entanto, a consequência prática disso é maquiar as estatísticas. Há grandes chances da redução do passivo de solicitações de refúgio ser fictícia. Isso porque, em muitos casos, a residência adquirida pelo solicitante será temporária, a qual muitas vezes não pode ser renovada, ou é muito difícil ou impossível de ser convertida em residência com prazo indeterminado. Nesses casos, o ex-residente voltaria logo adiante a solicitar o refúgio, aumentando novamente os números.
O mais preocupante, no entanto, é o fato de que o refúgio, um direito de proteção internacional, deixa de ser concedido àqueles que preenchem os requisitos legais. Ao extinguir as solicitações de refúgio de pessoas que conseguiram algum tipo de residência no Brasil, o refúgio passa a ser equiparado, na prática, a uma mera alternativa migratória, o que enfraquece ainda mais o seu status de proteção. Essa equiparação não é vislumbrada nem pela Convenção de 1951 nem pela Lei nº 9.474/1997, conhecida como a Lei do Refúgio. O status de refugiado tem um caráter protetivo que garante ao indivíduo uma série de direitos que não são concedidos a um imigrante que possui uma simples autorização de residência.
Além disso, a Lei de Refúgio brasileira determina que o reconhecimento de diplomas e certificados seja facilitado ao refugiado, além do ingresso em universidades. Garante também que não se exija do refugiado certos documentos do país de origem para exercer seus direitos e deveres no Brasil. O residente cujo pedido de refúgio for excluído não terá, portanto, acesso a esses benefícios.
O Brasil, devido ao seu histórico de desinteresse nas políticas de refúgio e de migração, chega ao ponto que talvez almejasse, intencionalmente ou não, desde o início: manipular o instituto do refúgio não como direito e sim como alternativa migratória. Ao determinar que pode extinguir o pedido de refúgio daqueles que sejam residentes, o Brasil deixa de exercer seu papel de proteção internacional ao criar entraves que obrigam os solicitantes a buscar outros caminhos.
O refúgio é, acima de tudo, um direito e é insubstituível por qualquer tipo de alternativa migratória. A pessoa refugiada, portanto, não pode ser prejudicada, mais uma vez, pela estrutura desinteressada em lhe garantir seu direito. É preciso considerar que, se o processo de refúgio funcionasse com eficácia, os interessados iriam se utilizar muito menos de alternativas migratórias diferenciadas.
Se os termos da Resolução nº 26 forem inegociáveis, é preciso pensar em uma proposta menos abrupta. A substituição do termo extinção por arquivamento seria uma saída menos drástica – na eventualidade do residente perder seu status migratório, ele poderia retomar seu pedido de refúgio sem ter que recomeçar do zero e passar por todas suas etapas novamente.
Desde 2015, o Conare tem passado por mudanças constantes na sua direção, havendo períodos nos quais os seus coordenadores ficaram por menos de seis meses no cargo. As frequentes mudanças, aliadas a um número irrisório de entrevistadores e pareceristas, são a justificativa institucional não só da demora nas decisões dos processos, mas da falta de dados confiáveis e da precariedade dos direitos processuais dos solicitantes de refúgio.
Sem compreender o refúgio como um direito de proteção internacional e não como benefício ou alternativa migratória, corremos o risco de que os artifícios institucionais para a redução da fila se perpetuem, mesmo que sob diferentes roupagens. Com a nova medida, o governo faz um novo malabarismo para esconder sua própria ineficiência às custas de direitos de quem precisa do amparo do Estado brasileiro.
The Intercept Brasil
O mais preocupante, no entanto, é o fato de que o refúgio, um direito de proteção internacional, deixa de ser concedido àqueles que preenchem os requisitos legais. Ao extinguir as solicitações de refúgio de pessoas que conseguiram algum tipo de residência no Brasil, o refúgio passa a ser equiparado, na prática, a uma mera alternativa migratória, o que enfraquece ainda mais o seu status de proteção. Essa equiparação não é vislumbrada nem pela Convenção de 1951 nem pela Lei nº 9.474/1997, conhecida como a Lei do Refúgio. O status de refugiado tem um caráter protetivo que garante ao indivíduo uma série de direitos que não são concedidos a um imigrante que possui uma simples autorização de residência.
Um imigrante cuja solicitação de refúgio seja extinta conforme a nova resolução poderá ser devolvido ao seu país de origem.Um refugiado não pode, sob quaisquer condições, ser devolvido pelo Estado brasileiro ao seu país de origem, princípio conhecido como non-refoulement e reconhecido pela jurisprudência internacional enquanto norma imperativa de direito (jus cogens). Como esse princípio da não-devolução não é reconhecido enquanto um direito à toda população residente, um imigrante cuja solicitação de refúgio seja extinta conforme a nova resolução poderá ser devolvido ao seu país de origem, ainda que se enquadre nos critérios para determinação da condição de refugiado estabelecidos pela lei brasileira. O migrante que tem uma simples autorização de residência precisará provar que corre risco de sofrer tortura ou tratamento cruel ou degradante, o que não ocorre no caso do refugiado reconhecido.
Além disso, a Lei de Refúgio brasileira determina que o reconhecimento de diplomas e certificados seja facilitado ao refugiado, além do ingresso em universidades. Garante também que não se exija do refugiado certos documentos do país de origem para exercer seus direitos e deveres no Brasil. O residente cujo pedido de refúgio for excluído não terá, portanto, acesso a esses benefícios.
O Brasil, devido ao seu histórico de desinteresse nas políticas de refúgio e de migração, chega ao ponto que talvez almejasse, intencionalmente ou não, desde o início: manipular o instituto do refúgio não como direito e sim como alternativa migratória. Ao determinar que pode extinguir o pedido de refúgio daqueles que sejam residentes, o Brasil deixa de exercer seu papel de proteção internacional ao criar entraves que obrigam os solicitantes a buscar outros caminhos.
O refúgio é, acima de tudo, um direito e é insubstituível por qualquer tipo de alternativa migratória. A pessoa refugiada, portanto, não pode ser prejudicada, mais uma vez, pela estrutura desinteressada em lhe garantir seu direito. É preciso considerar que, se o processo de refúgio funcionasse com eficácia, os interessados iriam se utilizar muito menos de alternativas migratórias diferenciadas.
O Brasil está deixando de exercer seu papel de proteção internacional.Do ponto de vista legal, essa medida extrapola a Lei de Refúgio. Isso porque essa lei não determina hipóteses de extinção do processo de refúgio nem possibilita que isso seja regulamentado pelo Executivo. A extinção por regularização migratória diferenciada seria, portanto, uma inovação não prevista pela legislação.
Se os termos da Resolução nº 26 forem inegociáveis, é preciso pensar em uma proposta menos abrupta. A substituição do termo extinção por arquivamento seria uma saída menos drástica – na eventualidade do residente perder seu status migratório, ele poderia retomar seu pedido de refúgio sem ter que recomeçar do zero e passar por todas suas etapas novamente.
Descaso estatal
Por trás dessas mudanças, reside algo ainda mais nocivo: o tratamento da população refugiada como uma chaga social que incha o sistema. O problema não é o número de solicitações, mas a falta de capacidade institucional do governo brasileiro em dar conta dos compromissos assumidos internacionalmente quando da ratificação da Convenção de 1951 e do Protocolo de 1967. Pior: se os números de solicitações de refúgio e de refugiados forem reduzidos, haverá uma diminuição ainda maior das já escassas políticas voltadas a essa população.Desde 2015, o Conare tem passado por mudanças constantes na sua direção, havendo períodos nos quais os seus coordenadores ficaram por menos de seis meses no cargo. As frequentes mudanças, aliadas a um número irrisório de entrevistadores e pareceristas, são a justificativa institucional não só da demora nas decisões dos processos, mas da falta de dados confiáveis e da precariedade dos direitos processuais dos solicitantes de refúgio.
Sem compreender o refúgio como um direito de proteção internacional e não como benefício ou alternativa migratória, corremos o risco de que os artifícios institucionais para a redução da fila se perpetuem, mesmo que sob diferentes roupagens. Com a nova medida, o governo faz um novo malabarismo para esconder sua própria ineficiência às custas de direitos de quem precisa do amparo do Estado brasileiro.
The Intercept Brasil