Com uma forte concentração de terras em posse nas mãos do agronegócio, o debate sobre a reforma agrária não costuma fazer parte da rotina dos moradores da cidade, mas deveria.


por Juliana Avila Gritti
Imagem por Mídia Ninja

Em julho do ano passado, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou uma nova proposta para diferenciar espaços rurais e urbanos no Brasil, baseando-se em diretrizes internacionais adotadas pelos EUA e pela União Europeia. De acordo com estes critérios, 76% da população brasileira reside em cidades – se contrapondo ao modelo antigo, que indicava 84,4%. Os dados demonstram que, independente da decisão metodológica, ainda existem muitas pessoas no campo, um espaço não democratizado devido à ausência de reforma agrária. A reestruturação do campo, todavia, não costuma fazer parte da rotina dos moradores da cidade, mas deveria.

“Hoje, quando falamos em direito à cidade, uma das coisas que precisamos pensar é no link entre urbano e rural”, diz Rodrigo Faria Iacovini, coordenador executivo do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico (IBDU). O advogado e urbanista dá destaque ao problema histórico de distribuição de terras no Brasil, “a nossa matriz é de força política baseada na propriedade, desde a época colonial. E até hoje uma parte da elite continua sendo rentista, vivendo de terras e de aluguel”.

Iacovini pontua que “criamos mecanismos políticos e jurídicos para concentrar cada vez mais a propriedade, tanto no campo quanto na cidade”. Um dos marcos legais desse conflito socioeconômico é a Lei de Terras, de 1850, que determinou a aquisição de terras apenas a partir da compra e venda, restringindo-as, portanto, àqueles de alto poder aquisitivo, excluindo imigrantes e, principalmente, ex-escravos. “Não é à toa que esse processo acontece paralelamente às lutas contra a escravidão”, avalia o urbanista. Outros lugares do globo, como os EUA, fizeram o caminho inverso: em 1862, por exemplo, o país decretou o Homestead Act, que legalizou a ocupação de terras sem dono por qualquer interessado em cultivá-las.

Saulo Mendes Goulart, doutor em história do Brasil pela Unicamp explica que a Lei de Terras surgiu para fazer a manutenção de um modelo já existente. Em 1808, a família real deu início ao padrão latifundiário, pois assim que se estabeleceu no Brasil passou a doar lotes para membros da Corte — inicialmente apenas na região costeira. A Lei de Terras e outras determinações governamentais do fim da monarquia e começo da República seguiram, por sua vez, o paradigma da concentração fundiária. O efeito colateral, segundo o professor, foi criar uma tendência para que as pessoas recorressem às cidades.

A estrutura desigual e ineficiente do campo, somada ao início da industrialização brasileira, fizeram o país viver um forte êxodo rural na primeira metade do século XX. As famílias saiam do ambiente rural para procurar melhores oportunidades nas cidades, mas estas também não se dispuseram a criar ferramentas para acolhimento digno dessa massa migrante, que, em abundância, foi submetida a salários insuficientes para garantir uma vida digna. A consequência, para o urbanista do IBDU, é que “as pessoas chegaram na cidade e foram morar em áreas que não eram do interesse do mercado imobiliário até o momento — áreas de condições ambientais precárias, de restrição legal à ocupação ou muito distantes do centro. Vimos, portanto, uma grande expansão dos centros urbanos e de suas periferias”.

Simultaneamente, as cidades em desenvolvimento estavam pouco distribuídas pelo país, como aponta Goulart, mas conseguiram manejar a situação migratória até a crise mundial de 1929. Com o colapso econômico e o Estado centralista de Getúlio Vargas, ficou de lado qualquer política governamental de investimento fora das principais cidades. A partir desse momento, o crescimento urbano passou a ser desenfreado, com pouco ou nenhum planejamento, cujas sequelas sentimos até hoje. “A não reforma agrária redundou também no fato de as cidades terem uma subcondição de vida, uma suburbanização, e com isso gerar um exército de reserva suficiente para a parca, pobre e porca industrialização brasileira”, sintetiza Iacovini.

Segundo dados do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), a grande propriedade representava cerca de 56% da ocupação fundiária em 2010, sendo que apenas 16% era considerada produtiva. O uso desse tipo de estabelecimento, por sua vez, é destinado à monocultura e à agroexportação, suscitando também outro debate, sobre soberania alimentar. Ou seja, a capacidade de decidir quais alimentos serão cultivados, produzi-los e comercializá-los localmente. A estrutura fundiária do país, entretanto, não permite o exercício dessa soberania, pois está majoritariamente voltada para o mercado externo de commodities. “Precisamos de um modelo que reverta a concentração rural, não só para benefício de quem está no campo ou na cidade, mas também como uma forma de soberania nacional”, defende Iacovini.

Em depoimento concedido durante a III Feira Nacional da Reforma Agrária, no mês de maio, o coordenador do Movimento Trabalhadores Sem Teto (MTST) e pré-candidato psolista à presidência da República, Guilherme Boulos, afirmou que “não é possível fazer reforma urbana em meio a um processo que, por falta de terra no campo, as pessoas são jogadas para a cidade sem nenhum direito. A luta por direito à cidade, que é uma sobretudo de não continuar jogando os mais pobres para as periferias mais distantes, está muito ligada com a luta pela reforma agrária no campo. O povo tem que ter terra – seja no campo, seja na cidade”.

*Juliana Avila Gritti é estudante de jornalismo e participa do curso de formação Repórter do Futuro

Le Monde Diplomatique

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