O Presidente da Câmara, deputado Arthur Lira (PP - AL) Pablo Valadares/Câmara dos Deputados |
Nos últimos meses, enquanto as atenções do público estão voltadas para a CPI da Covid no Senado, a Câmara aprovou mudanças que, na avaliação de críticos das propostas, enfraquecem o combate à corrupção no país e estimulam a impunidade.
Uma das principais alterações foi a reformulação da chamada Lei de Improbidade Administrativa. Também houve alteração na Lei da Ficha Limpa, liberando a candidatura de um número maior de políticos com prestação de contas rejeitadas, e no pacote anticrime, uma decisão que inviabilizou o reconhecimento de gravações pelo próprio participante de uma conversa como prova de um crime.
Para o presidente do Instituto Não Aceito Corrupção, o procurador Roberto Livianu, o Congresso aproveitou a pandemia e as investigações da CPI para “passar a boiada” da impunidade – em alusão ao termo empregado pelo então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, ao defender, em reunião ministerial de 22 de abril de 2020, a derrubada da legislação ambiental em meio à comoção na mídia causada pelas mortes por covid-19.
“Aquilo que o senhor Salles disse é o mundo real, a vida como ela é. É assim que se opera. Aquela ideia de supremacia de interesse público é ilusão”, critica Livianu. “Muitos dos que aprovaram as mudanças na Lei da Improbidade não têm clareza sobre o que aprovaram. Sabem que aprovaram algo que beneficia a eles próprios e a outros tantos no sentido de gerar ilhas de impunidade, mas não têm clareza exata do que aprovaram”, ressalta.
Em vigor desde 1992, a Lei de Improbidade Administrativa, também conhecida à época como Lei do Colarinho Branco, é responsável por sanções a agentes públicos acusados de enriquecimento ilícito, de causar prejuízos aos cofres públicos ou de atentar contra os princípios da administração pública.
Entre os pontos modificados pelos deputados, estão a exclusão da modalidade culposa dos atos de improbidade administrativa, a fixação de um prazo de 180 dias corridos para a conclusão de um inquérito civil sobre o assunto, e a condenação ao pagamento dos honorário de sucumbência por parte do Ministério Público em caso de improcedência da ação. O projeto precisa ser votado pelo Senado antes de ser enviado à sanção do presidente Jair Bolsonaro.
Para Livianu, repete-se no Brasil o que ocorreu na Itália logo após a Operação Mãos Limpas, megainvestigação da década de 90 que inspirou a Lava Jato no Brasil. “Já era difícil punir. Vamos tornar mais difícil ainda, com a criação de ‘n’ barreiras”, compara Livianu. Depois de sacudir a política italiana e provocar centenas de prisões, em meio a atentados contra investigadores, a Mãos Limpas foi sucedida por uma profunda mudança legislativa que restringiu a ação da Justiça e do Ministério Público.
Presidente da extinta comissão especial do Código de Processo penal, o deputado Fabio Trad (PSD-MS) reconhece que há um movimento crescente de “ressentimento” na Câmara em reação aos “abusos” da Lava Jato, mas entende que as mudanças feitas na Lei de Improbidade Administrativa não incentivam a impunidade.
Trad considera que os agentes públicos estão, muitas vezes, sujeitos ao humor e aos interesses dos integrantes do Ministério Público. “Há muita injustiça. Hoje, na dúvida, o promotor denuncia”, afirma o deputado. “Isso influencia no processo eleitoral. O achismo hoje é prestigiado em vez de ser combatido”, acrescenta.
Ainda em junho, logo após analisarem as mudanças na Lei de Improbidade, os deputados afrouxaram a Lei da Ficha Limpa para que não sejam declarados inelegíveis os gestores e políticos que tiveram suas contas rejeitadas, em casos cuja punição for apenas de multa. Hoje, a punição para esse tipo de caso é de inelegibilidade por oito anos.
Para o advogado e ex-juiz Márlon Reis, um dos idealizadores da Ficha Limpa, a mudança estimula a corrupção ao não exigir a prestação de contas de forma correta. "Em nenhuma jurisprudência eleitoral existe algo assim", observa Márlon. O projeto também está nas mãos do Senado agora.
"[Se aprovado, o projeto] vai servir só para trazer ainda mais impunidade e afrouxar punições, como também é o caso do PL que altera a Lei de Improbidade [aprovado em 15 de junho]", afirmou o ex-juiz, que também é cofundador do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral.
Roberto Livianu lembra que a Lei da Ficha Limpa tem como origem uma iniciativa popular, que forçou o Congresso a restringir a candidatura de políticos e gestores com condenações em órgãos colegiados da Justiça ou prestações de contas rejeitadas. Para o procurador e presidente do Instituto Não Aceito Corrupção, ao flexibilizar a lei, o Congresso desfaz a vontade popular.
“Percebe-se um nítido movimento no sentido de criar regras garantidoras da impunidade, produzidas por legisladores, muitos deles investigados ou processados por improbidade administrativa ou por práticas criminosas diversas. Isso nos permite compreender por que que, para 93% dos brasileiros, os detentores do poder usam-no visando ao autobenefício, de acordo com o Latinobarómetro”, explica Livianu.
O promotor destaca outra mudança feita pelo Congresso este ano que dificulta o combate à criminalidade. Ele cita a derrubada de um veto presidencial a um dispositivo do pacote anticrime, em abril. Com a rejeição do veto, passou-se a considerar ilícita a escuta ambiental, ou seja, a gravação colhida pela vítima de crime ou por jornalista investigativo, que é admitida como válida na maior parte dos países democráticos.
“Hoje, se uma mulher que todo dia é ameaçada pelo marido conseguir gravar e levar para a delegacia a gravação dessa ameaça, ela vai ouvir do delegado que tem de voltar para casa e ser enviada para o cemitério porque essa prova não tem mais valor”, exemplifica.
O projeto aprovado pela Câmara também estabeleceu a obrigatoriedade de o Ministério Público pagar os honorários de sucumbência na hipótese de ações descabidas e acabou com imprescritibilidade das ações de reparação de danos ao patrimônio público. “Se aparecerem provas contra um indivíduo absolvido hoje por improbidade, ele não poderá mais ser processado”, observa Livianu.
O texto também estabeleceu o prazo de seis meses para o Ministério Público concluir a investigação por improbidade. O prazo é considerado muito apertado pelo presidente do Instituto Não Aceito Corrupção. Segundo ele, dificilmente se conclui a apuração de um caso nesse período. “É uma vergonha. Como fazer investigações complicadas com documentos, traduções, dezenas de investigados em tão pouco tempo?”, questiona.
Segundo o procurador, o substitutivo também traz uma “cláusula aberta à impunidade”, ao não configurar improbidade quando a ação ou omissão decorrer de “divergência interpretativa da lei, baseada em jurisprudência ou em doutrina, ainda que não pacificadas, mesmo que não venha a ser posteriormente prevalecente nas decisões de controle ou dos tribunais”.
Para Roberto Livianu, é preciso ficar atento aos próximos passos do Congresso no “desmonte” do sistema de proteção ao patrimônio público. Ele lembra que o Congresso ensaiou votar uma proposta de emenda à Constituição para impedir que a Justiça afastasse do mundo ou prendesse um parlamentar.
O texto, apelidado de PEC da Impunidade por seus críticos, foi discutido quando o deputado Daniel Silveira (PSL-RJ) foi preso e afastado do mandato pela primeira vez por determinação do Supremo Tribunal Federal. A votação da proposta, no entanto, repercutiu mal na opinião pública, o que levou o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), a engavetar a PEC. “Eles não têm limites. Isso fere os princípios universais de Justiça, da separação dos poderes. Neste caso houve grita e se conseguiu conter”, ressalta Livianu.
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