Nada melhor para entender o resultado da ação suicida dos grupos políticos de centro – e mesmo os de direita não extremada – do que a composição atual da Câmara - Marcelo Camargo / Agência Brasil



Maria Inês Nassif

Para tirar a esquerda do poder, a classe dominante destruiu o quadro partidário que a apoiava

Uma década de conspiração produziu efeitos irreparáveis no quadro político-partidário do país.

Ironicamente, os efeitos mais devastadores foram sentidos nas estruturas políticas de centro e de direita que, envolvidas na trama para desqualificar a política – que teve como centro a Operação Lava Jato – não entenderam que renunciavam à própria organicidade e terceirizavam poder (e hegemonia) a políticos de ocasião, levados à ribalta pela onda extremista de direita ceivada desde as manifestações de 2013.

Não sobrou pedra sobre pedra das organizações político-partidárias nas quais as classes dominantes “modernas” operavam antes.

E os partidos de aluguel e de extrema-direita, estimulados por elas para aumentar a onda antipetista, fogem totalmente ao seu controle: essas legendas são mais facilmente manipuláveis por lideranças militares e extremistas e mais facilmente corrompíveis por governos do momento. Não são cooptáveis por ideologia.

Nada melhor para entender o resultado da ação suicida dos grupos políticos de centro – e mesmo os de direita não extremada – do que a composição atual da Câmara.

Ela reflete on line, a cada votação, caras e pensamentos de uma massa de políticos despolitizada, sem vínculos de classe e com claros interesses comerciais de ocasião, e uma absoluta incapacidade desse amontoado de parlamentares de articular qualquer projeto político que não seja o de se vender no varejo para cumprir a função delegada pela elite do país: desestabilizar as instituições, assaltar as classes sociais menos favorecidas e apoiar projetos autoritários de poder.

Por entender a política como algo menor, desprezível, um estorvo que simplesmente deveria ser colocado abaixo para que se completasse a conspiração contra os governos de esquerda, a elite brasileira terceirizou o serviço sujo.

Sua mão de obra é o lumpesinato que ascendeu à burguesia sem, contudo, obter aceitação de sua nova classe; parlamentares levados à política pela via da manipulação religiosa de pessoas humildes; uma nova classe política moldada à imagem e semelhança da antiga política de coronéis (“donos” da política local), mas com caráter mais nacional, interligação facilitada pela informatização dos meios de pagamento, pelo uso das mídias sociais e pela ação indiscriminada de fake news; grupos de interesse (como agronegócio e indústria armamentista) que são, entre a burguesia, os mais radicais e os mais cruéis quando se trata de formulação de políticas de proteção social, do trabalho, de políticas de segurança e de proteção à propriedade privada; e milicianos e militares que, na política, ampliaram espaços de poder antes circunscritos a populações submetidas pelo medo ou nos quartéis.

No pós-ditadura militar, o embate de forças que produziu, em 1988, a Constituinte da democracia e sedimentou também um quadro partidário que, embora majoritariamente conservador, foi capaz de formular projetos políticos – ao centro e à esquerda – que mantiveram o país em águas relativamente tranquilas até 2013.

É curioso, mas depois de 21 anos de ditadura (e 13 anos de bipartidarismo), o novo quadro partidário que começou a se organizar em 1979 (com o fim do bipartidarismo) retomou o perfil do sistema partidário pré-golpe.

No atacado, algumas grandes agremiações: um partido das elites intelectuais com afinidade na área militar e acesso às elites econômicas, formulador de projetos de desnacionalização da economia e fortemente vinculado aos Estados Unidos (UDN no pré-golpe, PSDB no pós); uma legenda com crescente vinculação orgânica com a classe trabalhadora, com vocação para partido de massas mas capaz de se adequar à disputa institucional pela hegemonia (PTB antes, PT depois); partidos de centro constituídos como uma espécie de conglomerado de lideranças locais (antes PSD, depois PMDB e PFL).

O sistema anterior a 1966 e reeditado em 1979 também abria espaço para pequenos partidos regionais que funcionavam como feudos de lideranças desalojadas do condomínio partidário maior, ou como legendas de aluguel (como o PSC e o PSP, hoje muitos deles), e eram apêndices dos partidos no poder; pequenas legendas de esquerda sem vocação para organização de massa, ou impedidos de funcionar legalmente, que passavam a orbitar em torno do grande partido trabalhista (PCB , PCdo B e PSB antes, PCB logo depois, e até agora PCdo B, PSB, PDT e PSOL); ou pequenas organizações de direita.

O enfraquecimento eleitoral dos tucanos, o desprezo da classe social que representava pela política e o ataque às instituições democráticas promovido por essas elites políticas e econômicas corroeram internamente os partidos da coalizão de FHC.

No quadro pós-impeachment do primeiro presidente eleito, Fernando Collor (PRN), em 1991, a polarização eleitoral foi construída em torno do PSDB e do PT. O sistema partidário reeditado fez do PMDB o antigo PSD: mantinha grandes bancadas parlamentares que apoiavam majoritariamente o governo do momento, mas com enorme habilidade para pular do barco quando os ventos sopravam contra o aliado.

Dispunha de uma reserva de dissidentes capaz de acenar dubiamente para a opinião pública quando assumia apoio a medidas impopulares, ou para garantir os interesses inconfessáveis das suas lideranças.

Ao PFL (hoje DEM, que sofreu a dissidência do agora PSD) coube o papel de uma UDN mais à direita, ideológica e perfeitamente ajustada ao governo tucano.

Na prática, não existiram diferenças ideológicas entre ambos nos dois períodos presidenciais de Fernando Henrique Cardoso (1995-1998 e 1999-2002).

Apenas a aglomeração de lideranças mais tradicionais e familiares no PFL, e de intelectuais originários da esquerda no PSDB, davam a imagem de “atraso” a um e a de “modernidade” a outro. Nada além disso.

Não foi nada moderna, todavia, a estratégia de desestabilização do governo Dilma em que o PSDB, a menina dos olhos da elite brasileira, e o PFL, o amigo que a elite mantinha envergonhada, se meteram.

O comportamento do Supremo Tribunal Federal (STF) na condução do chamado mensalão, e a sua tolerância com a condução criminosa da Operação Lava Jato pelo juiz de primeira instância, Sérgio Moro, e pelo procurador paranaense Deltan Dallagnol, não existiriam sem o vínculo orgânico do sistema judiciário com o PSDB, que funcionou como uma verdadeira máquina de propaganda política antipetista.

Supunha-se, então, que o PSDB seria o maior beneficiário do desgaste do partido de Lula e Dilma. A radicalização judicial e partidária, todavia, feriu de morte o partido de FHC.

A onda de comoção pública artificialmente criada contra o PT fugiu ao controle sem que essas forças políticas “modernas” tivessem a expertise desenvolvida internacionalmente pela extrema-direita não apenas de golpear as instituições, mas transformar o golpe em votos.

O enfraquecimento eleitoral dos tucanos, o desprezo da classe social que representava pela política e o ataque às instituições democráticas promovido por essas elites políticas e econômicas corroeram internamente os partidos da coalizão de FHC.

Eles simplesmente deixaram de polarizar com o PT. Ascenderam à direção partidária tucana quadros com mais verniz e roupa de grife, mas política e socialmente muito semelhantes ao lumpesinato que ocupou os microfones da Câmara para dizer impropérios contra a presidente Dilma Rousseff na votação da abertura do processo de impeachment que a vitimaria.

Hoje o PSDB não tem quadros para liderar e não tem lideranças para disputar uma Presidência. Nessa articulação burra, preguiçosa e golpista para tirar o PT do poder, a burguesia brasileira abriu um espaço inédito para que generais extremistas de direita e milicianos emergissem no cenário político com estratégia de ocupação de todos os espaços de poder. A democracia brasileira está pagando o preço.

*Maria Inês Nassif é jornalista e cientista política. 

Edição: Leandro Melito


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