Pensando dialeticamente, se existe uma onda neofacista pelo mundo, essa onda se configura em formas específicas em cada território, não sendo uniforme em todos os países. Da mesma forma, pode-se falar da resistência, daí o otimismo bem vindo de David Harvey
Por Alvaro Miranda-01/09/2019
Arte: Caroline Oliveira/Justificando
Tenho dito ultimamente que, se alguns andam deprimidos com a onda obscurantista, muitos outros estão reagindo e se mobilizando. Sem falar que as imagens (por falas, fotos ou filmes) disseminadas por Bolsonaro e seus apoiadores não refletem a disposição da sociedade, nem os fenômenos da realidade cotidiana e macroestrutural do país. Sem falar também que mágico algum pode desembaraçar, com milagres ou estripulias verbais, ou ainda, simplesmente, com Exército nas ruas, as complexidades diversas de uma nação continental como o Brasil.
O Brasil parece estar prostrado porque a agenda pública e seu marketing são controlados pelos mecanismos oficiais, com poder de amplitude pelo aparato publicitário, além da novidade dos robôs (milícias) digitais. A tendência é sempre quem está no governo “pautar” a sociedade. Assim, imagens construídas se sobrepõem ao que efetivamente acontece, parecendo que elas, as imagens, são a realidade. Entretanto, o Brasil não é apenas o que se mostra no Jornal Nacional, muito menos o que sai da verborragia grotesca de Jair Bolsonaro.
Brasil é um vasto território de territórios sobrepostos não só geográficos, mas de movimentos, potencialidades, criações. A vastidão física do Estado nacional compreende diversos tipos de territórios para além de suas configurações formais em entes federativos – e para além também das dimensões concretas. Mesmo a menor municipalidade mais distante dos grandes centros urbanos pode conter territórios diversos convivendo com diferentes ações, culturas e movimentos. Territórios, inclusive, “imateriais” na dialética das interações entre governos, indivíduos, empresas, grupos, associações, escolas, igrejas e instituições variadas.
As falas tresloucadas do bolsonarismo se esfarelam à menor resistência de um fenômeno maior que muitos ignorantes do governo e seus apoiadores messiânicos não compreendem – que é aquilo que se chama República Federativa do Brasil, com suas autonomias e divisões de competências e funções. Mais ainda: com sua correlação de forças e conflitos de oligarquias locais e movimentos sociais. Repito o que disse outro dia: Brasil não é uma família ou uma boiada a ser conduzida por gente estúpida e metida a esperta, armada de espingarda ou fuzis e deslumbrada com as cores da bandeira dos Estados Unidos.
Por mais ímpeto fascitóide que qualquer tresloucado tenha, não é bem assim, vou botar os militares na rua… e pronto! Ou vou fechar esse ou aquele Poder… e pronto! Ou vou dar as costas, com ofensas e vitupérios, a esse ou aquele parceiro comercial… e pronto! Além dos territórios de interesses nos seus limites geográficos internos, há também a sobreposição de realidades territoriais na interdependência entre os países. Território não significa somente limite geográfico, mas também poder e soberania, algo sempre no devir transformador, conflito ou não, com o outro. Ou então, na ausência de poder e soberania, casa da mãe da joana ou terra de ninguém.
Não é bem assim também, ah, vamos chamar os Estados Unidos para dar um golpe ao estilo “tabajara”, como o tentado recentemente, de maneira patética e frustrada (ainda bem), contra Nicolas Maduro, na Venezuela. Existem outros atores internacionais (players, como se costuma dizer) importantes nesse início do século XXI – e mais multipolaridade geopolítica, mesmo considerando as hegemonias derivadas da segunda guerra mundial ainda presentes e dando as cartas em muitas situações.
Harvey, que dispensa comentários em relação à importância do seu pensamento sobre as relações entre capitalismo e configuração de limites e desterritórios, reforçou meu otimismo, coincidindo com a leitura que ando fazendo de três livros. São trabalhos que fornecem elementos interessantes sobre a necessidade de se pensar geografia, economia e cultura de forma interconectada. Essas três áreas de conhecimento nos remetem, inevitavelmente, à reflexão sobre o tema da identidade nacional.
Vejam: lutar pela identidade não significa cristalizar-se no passado, ou no folclore de costumes estereotipados, uma vez que ela é dinâmica e transformadora de si e do entorno, na sua relação com o outro de forma diacrônica. Portanto, inevitavelmente como maneira também de resistência ao obscurantismo que quer sufocá-la e matá-la. Privatizações, entrega de recursos estratégicos, evasão de divisas, rentismo como um dos componentes preponderantes do PIB, ausência de investimento em educação, ciência e tecnologia e desindustrialização compõem os elementos destruidores da identidade e da soberania.
Essas duas questões (identidade e soberania) têm a ver com o globalismo no seu processo contraditório de construir localismos, como já ensinou Octavio Ianni em décadas passadas. Destruição da identidade não combina com desenvolvimento – que, por sua vez, não combina com desmonte da soberania nacional. Só países soberanos conseguem se desenvolver. E soberania nacional nada tem a ver com destruição dos localismos identitários internos em seu grande território como federação.
Soberania também não combina com xenofobia, mas também não despreza a fixação de prioridades no que diz respeito à solução dos problemas que afetam todos, brasileiros e estrangeiros, nascidos e/ou residentes aqui – e não somente um grupo de rentistas nacionais e internacionais que abocanham a maior parte do PIB nacional, cujas notícias de crescimento espalham mais nuvens de obscurantismo ao não revelarem como é composto esse parâmetro. Amartya Sem tem razão na sua ideia de “desenvolvimento como liberdade”, ao propor uma reflexão que não reduza a noção de desenvolvimento a simplesmente “crescimento” atrelado aos critérios contidos no PIB. De que adianta crescimento do PIB com manutenção do desemprego? Se isso acontece, do que é composto o PIB?
O primeiro livro é “Olhares de jovens geógrafos para o estado, a cidade e a educação” (Curitiba: Appris, 2019), organizado pela professora da Universidade de São Paulo Maria Eliza Miranda. O trabalho traz artigos e pesquisas sobre diferentes ângulos acerca da formação de geógrafos, mas não se limitando às questões pedagógicas, trazendo reflexões provocadoras sobre o próprio objeto em si da geografia.
Orientadora de dezenas de trabalhos de graduação, com experiência na formação de professores da área, tendo atuado também, durante décadas, no magistério do ensino médio, Maria Eliza destaca a importância do papel dos futuros geógrafos e professores de Geografia na sociedade atual, “já que praticamente todas as atividades humanas se baseiam em informações geográficas (grifo da autora), tanto em nível pessoal como na vida profissional, com impactos na economia, política, cultura, religião, ciência e tecnologias.”
Acrescento aqui a ironia dos paradoxos da violência simbólica perpetrada pelos robôs digitais bolsonaristas. Por mais que se pratique o estupro cotidiano da inteligência, limites concretos da realidade impedem qualquer governo de ter êxito, produzindo somente efeitos pirotécnicos através do Twuitter – e o recente exemplo da repercussão internacional das queimadas na Amazônia é prova eloquente de que geografia não pode ser considerada apenas uma simples disciplina acadêmica.
Num dos trabalhos reunidos no livro, Débora Gondim Liberato faz abordagem original com o que chama de “percurso filosófico realizado com a Geografia”, compreendida como “Filosofia das Técnicas”. Isso, conforme escreve: “(…) no movimento da totalidade, com o objetivo de compreender o nosso tempo e nosso espaço. A Geografia como ‘Filosofia das Técnicas’ é uma concepção criada pelo professor Milton Santos para dar conta da realidade. Trata-se, portanto, de um sistema aberto que reúne os principais elementos do espaço geográfico: técnica, tempo, razão e emoção (…).” (p. 152).
O segundo livro é “A questão regional na era Lula: uma análise de ideias, atores e interesses” (Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2013), do pesquisador Ricardo Karan, Doutor em Ciências, Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento pela UFRJ. Com notável densidade teórica e bibliográfica, o autor propõe reflexão a partir de metodologia baseada em marco teórico-conceitual do que se chama economia política institucionalista.
Vale lembrar aqui o conceito de instituições como conjunto de regras e normas, sejam formais ou informais, em determinado contexto. Nesse campo de estudos, não se costuma fazer relação de sinonímia entre instituições e organizações, embora, em algumas situações, elas se confundam em dimensões abstratas e/ou concretas.
Em suma, dentre outras coisas, o livro de Karan joga luz à necessidade de se pensar as instituições como fator determinante nos resultados econômicos e sociais das políticas públicas. Observa logo no início que “a literatura especializada tem apontado que o revigoramento da temática regional e a (re)descoberta da influência territorial sobre a economia têm forte relação com o debate pós-fordista sobre o desenvolvimento (…).” (p. 22). Exemplo interessante e recente que podemos pensar é a formação do consórcio dos estados do nordeste brasileiro nesse sentido.
Por fim, a questão da identidade nacional, em sua diversidade regional dos diferentes territórios da federação brasileira, e mesmo dentro de cidades. Trata-se do belíssimo livro, em sua plasticidade e conteúdo, sob o título “Prospecção e capacitação em territórios criativos” (Niterói, CEART/Mundo das Ideais: 2017), organizado por Leonardo Guelman, Juliana Amaral dos Santos e Pedro De Andrea Gradella, da Universidade Federal Fluminense (UFF).
O trabalho traz reflexões e pesquisas sobre o desenvolvimento de potenciais comunitários a partir das práticas culturais nos territórios do Cariri (no Ceará), de Madureira (na cidade do Rio de Janeiro), do Quilombo Machadinha (no município fluminense de Quissamã) e na cidade de Paraty, também no estado do Rio de Janeiro.
O coordenador do Projeto Prospecção e Capacitação em Territórios Criativos, Leonardo Guelman, afirma que “as expressões imateriais constituem a arque-escrita, ou a primeira escrita do território, e é sobre essa primeira base que um processo em diálogo com as forças culturais deve se estabelecer.” (p. 14).
Guelman observa ainda que um trabalho em economia criativa, “no lugar de pautar-se por empreendimentos já estabelecidos no âmbito das indústrias criativas ou de bureaux de trabalho com profissionais mais ou menos inseridos no mercado, deve, diferentemente, pautar-se, orientando-se para estruturas mais precárias e expressões que vimos designando como granulares, ou seja, uma economia das expressões singulares e de atores moleculares.” (p. 14).
Na consideração da presente reflexão sobre a necessidade de pensarmos territórios, geografia, economia e cultura, pode-se concluir o seguinte: quem nunca percorreu este Brasil gigante e sedutor intui, mas quem já o conhece in loco atesta de forma sobeja, com documentos, entrevistas e diversas experiências, a riqueza do Brasil em termos de potencialidade de resistência e disposição para desenvolver uma ontologia própria a partir do seu legado histórico.
Pensando dialeticamente, se existe uma onda neofacista pelo mundo, essa onda se configura em formas específicas em cada território, não sendo uniforme em todos os países. Da mesma forma, pode-se falar da resistência, daí o otimismo bem vindo de David Harvey.
(*) O autor lança no próximo dia 18, no Rio de Janeiro, seu quinto livro de poesia, “Estranho país que teus olhos já não procuram mais”, pela 7Letras.
GG
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