Há 25 anos, uma enorme manifestação eclodiu em Cochabamba contra a privatização do sistema municipal de abastecimento de água
Estevam SilvaFernanda Oliveira
Opera Mundi
8–11 minutos
Há 25 anos, uma enorme manifestação eclodiu na cidade de Cochabamba, na Bolívia. Os populares protestavam contra a privatização do sistema municipal de abastecimento de água.
Conduzida pelo governo neoliberal de Hugo Banzer, a privatização causou enormes problemas para a população boliviana, levando as contas de água a subiram até 350%.
Os protestos evoluíram para uma verdadeira revolta popular, que se prolongou por quatro meses — forçando o governo boliviano a reestatizar o serviço.
O receituário neoliberal na Bolívia
A década de 80 foi marcada na América Latina pela ascensão das doutrinas neoliberais, nomeadamente das teorias preconizadas pelos economistas da chamada “Escola de Chicago”. Em um contexto marcado pela crise hiperinflacionária e alto endividamento externo, ideias como “livre mercado” e a diminuição do tamanho do Estado foram vendidas como panaceias para o desenvolvimento econômico das nações periféricas.
A Bolívia foi um dos primeiros países da região a adotar o receituário neoliberal. Em 1985, em meio ao processo de redemocratização, o governo de Victor Paz Estenssoro instituiu a Nova Política Econômica — um modelo de ajuste estrutural baseado na máxima “Menos Estado e Mais Mercado”. O ajuste prometia sanar as finanças do país, arruinadas após 20 anos de ditadura militar.
A implementação do modelo econômico neoliberal se aprofundou nos anos 90. Pressionado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e pelo Banco Mundial, o governo de Gonzalo Sánchez de Lozada passou a seguir estritamente os ditames do Consenso de Washington, baseado em rígida austeridade fiscal, abertura econômica, redução dos investimentos públicos, corte de benefícios e serviços sociais e, sobretudo, privatização das estatais.
Setores estratégicos, como a exploração do gás natural, o transporte ferroviário e as telecomunicações, foram repassados para o controle privado — sobretudo para o capital internacional.
A promessa de desenvolvimento, entretanto, mostrou-se ilusória. Os trabalhadores perderam poder de compra, ao passo que a desigualdade social e a pobreza aumentaram de forma expressiva.
A privatização da SEMAPA
Apesar dos resultados desastrosos, as políticas neoliberais continuaram sendo defendidas pela imprensa, governo e órgãos internacionais como solução para os problemas do país — incluindo o histórico problema de abastecimento de água em Cochabamba, a quarta maior cidade da Bolívia.
Situada em um vale a leste da Cordilheira dos Andes, Cochabamba é marcada pelo clima seco, com baixa precipitação pluviométrica. O aprovisionamento de água depende em grande medida do Rio Rocha, cuja vazão torna-se extremamente baixa no inverno, prejudicando o abastecimento.
A ausência de investimentos em segurança hídrica somado ao crescimento acelerado da cidade agravou ainda mais o quadro de déficit hídrico. Aproveitando-se das queixas da população, imprensa e agentes econômicos passaram a defender a privatização da água.
Em 1997, Hugo Banzer venceu a eleição presidencial prometendo resolver o problema de abastecimento através da transposição do Rio Misicuni. Sem recursos para bancar as obras, o governo boliviano recorreu ao Banco Mundial.
A instituição, entretanto, condicionou o financiamento do projeto à privatização da SEMAPA — companhia pública responsável pelo abastecimento de Cochabamba. Banzer concordou com a exigência e começou a preparar a privatização da companhia.
Dois anos depois, o governo boliviano assinou um contrato que repassava a distribuição de água para a iniciativa privada por 40 anos. O contrato foi cedido a um consórcio chamado “Aguas del Tunari”, registrado no paraíso fiscal das Ilhas Cayman e formado por três multinacionais estrangeiras: a norte-americana Bechtel, a italiana Edison e a espanhola Abengoa.
Por exigência do Banco Mundial, o processo de privatização ocorreu sob sigilo e foi eivado de irregularidades — a começar pelo valor subfaturado da venda. As cláusulas do contrato eram confidenciais e previam a indexação das tarifas ao dólar americano.
Após a privatização da SEMAPA, o governo boliviano sancionou a Lei 2029, regulamentando o manejo da água potável. Na prática, a lei visava respaldar os interesses econômicos do consórcio.
A “Aguas del Tunari” passou a deter o monopólio da distribuição da água. A população foi proibida de perfurar poços artesianos, mesmo em regiões não atendidas pelo sistema. A companhia também ganhou o direito de exigir da população o pagamento de licença pelo direito de coletar água da chuva.
As promessas de investimentos em segurança hídrica não saíram do papel e o projeto de transposição do Rio Misicuni foi descartado.
A Guerra da Água
Visando maximizar os lucros, a “Aguas del Tunari” reduziu o número de funcionários e os investimentos na manutenção do sistema, levando à deterioração do serviço. A qualidade da água fornecida decaiu e os cortes no fornecimento de água tornaram-se cada vez mais recorrentes.
Ao mesmo tempo, as tarifas, vinculadas ao dólar, tiveram um aumento descomunal. Em menos de um ano, as contas de água subiram até 350%.
Os gastos com água chegaram a comprometer mais de 20% da renda média das famílias — um montante inviável para o orçamento da imensa maioria dos bolivianos. Mesmo a classe média viu-se obrigada a fazer sacrifícios, como retirar os filhos de escolas particulares e cancelar planos de saúde para seguir tendo abastecimento de água.
O anúncio de um novo aumento das tarifas de água em janeiro do ano 2000 foi o estopim da revolta popular. Sentindo-se lesada pela privatização e vendo o usufruto de um bem vital ameaçado, a população saiu às ruas. À frente dos protestos estava a população marginalizada da periferia de Cochabamba.
Movimentos sociais, organizações sindicais e federações camponesas se uniram na “Coordinadora para la Defensa del Agua” e exortaram o povo à defesa de seus direitos, publicando o Manifiesto a Cochabamba.
Os manifestantes bloquearam as estradas e acessos da cidade, forçaram o fechamento do aeroporto e ocuparam a Plaza de Armas. Os protestos duraram meses e se espalharam pelo país, chegando à capital, La Paz.
Visando debelar o levante, o governo de Hugo Banzer declarou estado de sítio e toque de recolher, fechou estações de rádio e ordenou a prisão dos líderes da Coordinadora. As forças de segurança utilizaram extrema violência para reprimir os manifestantes, resultando na morte de pelo menos duas pessoas (incluindo um adolescente de 17 anos) e ferindo outras centenas.
A repressão inflamou ainda mais os ânimos da população, que compareceu em massa aos novos atos. No dia 7 de abril, mais de 60 mil pessoas compareceram à manifestação em Cochabamba.
Portando pedras e pedaço de pau, os populares disputaram o controle da cidade quadra a quadra, forçando a polícia a recuar.
Vitória do povo
Acuado pela reação popular, o governo de Hugo Banzer deu o braço a torcer. O contrato de concessão firmado com a “Aguas del Tunari” foi revogado e a SEMAPA foi reestatizada. O consórcio iniciou uma batalha legal contra o governo boliviano, exigindo uma compensação de mais de 25 milhões de dólares.
A batalha legal se arrastou por seis anos e atraiu a atenção de diversos movimentos anticapitalistas do mundo inteiro. O episódio é narrado no documentário canadense The Corporation, lançado em 2003. Seis anos depois, as multinacionais desistiram da indenização.
A Guerra da Água tornou-se um marco da luta contra o neoliberalismo na Bolívia. Desde então, o país tem resistido à pressão internacional para privatizar outros recursos naturais, como o gás e o petróleo.
A experiência boliviana exemplifica de forma cristalina os efeitos deletérios da priorização dos interesses econômicos sobre gestão do bem comum. Não por acaso, está longe de ser um evento isolado.
Somente nas últimas duas décadas, 312 cidades de 37 países reestatizaram seus serviços de abastecimento de água — tanto em países periféricos, como Argentina, Equador e Jamaica, como nos países do capitalismo central, tais como França, Alemanha e Estados Unidos.
O Brasil segue na contramão da tendência global, promovendo e incentivando a privatização de seus sistemas de abastecimento — incluindo o maior deles, a Sabesp.
Postar um comentário
-Os comentários reproduzidos não refletem necessariamente a linha editorial do blog
-São impublicáveis acusações de carácter criminal, insultos, linguagem grosseira ou difamatória, violações da vida privada, incitações ao ódio ou à violência, ou que preconizem violações dos direitos humanos;
-São intoleráveis comentários racistas, xenófobos, sexistas, obscenos, homofóbicos, assim como comentários de tom extremista, violento ou de qualquer forma ofensivo em questões de etnia, nacionalidade, identidade, religião, filiação política ou partidária, clube, idade, género, preferências sexuais, incapacidade ou doença;
-É inaceitável conteúdo comercial, publicitário (Compre Bicicletas ZZZ), partidário ou propagandístico (Vota Partido XXX!);
-Os comentários não podem incluir moradas, endereços de e-mail ou números de telefone;
-Não são permitidos comentários repetidos, quer estes sejam escritos no mesmo artigo ou em artigos diferentes;
-Os comentários devem visar o tema do artigo em que são submetidos. Os comentários “fora de tópico” não serão publicados;